Encrespadinhos: projeto de leitura exalta a negritude com afeto

A literatura é uma ferramenta potente de transformação. E ganha ainda mais força quando permeia um terreno tão fértil, como a infância. É o que mostra o projeto Encrespadinhos, uma iniciativa de jovens engajados em combater desigualdades e participar ativamente da construção de uma educação antirracista em escolas da periferia de São Paulo (SP).

A ideia veio de um grupo de jovens negros que, há 8 anos, começou a discutir questões raciais e identitárias, pensando nos impactos na vida deles dentro e fora da comunidade escolar. Os encontros e atividades ganharam força e eles formaram o Coletivo Encrespad@s. Então, em 2022, uma inquietação veio à tona: faltava uma atividade específica para tratar de questões raciais com crianças. “Percebemos que, com a literatura, poderiamos ajudar a pautar o lugar das infâncias, sobretudo das infâncias negras em meio a isso tudo. Assim nasceu o Encrespadinhos”, explica Bruno Souza, um dos idealizadores do projeto. 

Bruno em mediação de leitura com as crianças em escola de Parelheiros, na zona sul de São Paulo

Bruno em mediação de leitura com as crianças em escola de Parelheiros, na zona sul de São Paulo, capital

Já em meados de 2023 a ideia foi colocada em prática. Os integrantes do coletivo entraram em contato com escolas e se ofereceram para fazer leituras e dinâmicas junto às crianças, sempre partindo da temática étnico-racial. Por enquanto, as atividades acontecem em duas instituições, localizada  em Parelheiros, um bairro periférico da zona sul da capital paulista. Estão envolvidos estudantes do Ensino Fundamental I, na faixa etária de 7 a 12 anos. Segundo Bruno, a região foi escolhida por ter uma grande densidade populacional, sobretudo de crianças negras. Além disso, o coletivo já tinha relação com algumas dessas escolas, o que facilitou o processo. 

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Literatura negro-afetiva colocada em prática

Curiosas por natureza, as crianças se mostram sempre abertas para receber o projeto literário e participar das atividades propostas no Encrespadinhos. Elas transparecem a avidez ema cultivar e fazer prosperar com toda a potência as sementes plantadas em cada roda de leitura. Por isso, a escolha dos livros que serão apresentados para as turmas é tão importante e feita com todo o cuidado pelos integrantes do coletivo.

“A mediação de leitura pode ser esse lugar para tratar de assuntos difíceis e complexos da a sociedade. No caso, a questão racial”, Bruno Souza, idealizador do projeto Encrespadinhos 

“Com uma parceria firmada com a Companhia das Letras, construímos todo um acervo embasado na literatura negro-afetiva, ou seja, com histórias, que podem ser protagonizadas por personagens negros ou não, mas que sejam contadas a partir de uma perspectiva afetuosa, com nuances de complexidade que fujam dos estereótipos da pobreza e de infelicidade, que, ainda hoje, são frequentemente ligados a personagens e pessoas negras”, diz ele. “Para nós, essa literatura pode contribuir para que as crianças criem outra imagem sobre a sua própria personalidade, sobre a coletividade que compõe a comunidade e sobre a formação de outra imagem do território em que elas vivem. Acreditamos que é uma ótima estratégia para tratar das questões raciais dentro da educação”, acrescenta. 

Ele explica que as mediações de leitura sempre acontecem em duplas. Enquanto um integrante do coletivo lê com as crianças, o outro fica responsável por perceber e registrar as nuances das reações dos pequenos ouvintes. “A ideia é que, ao fim do ano, possamos apresentar para as escolas quais foram os impactos que aquela atividade trouxe para aquela turma que participou do processo”, diz ele. “São mudanças que podem ser observadas por meio da linguagem, da estética e até da transformação de espaços físicos”, aponta. Hoje, as leituras acontecem duas vezes por mês, a cada 15 dias. 

A literatura é uma ferramenta potente de educação antirracista

A literatura é uma ferramenta potente de educação antirracista

O acervo do Encrespadinhos foi formado a partir da parceria com a Companhia das Letras, que doou 60 livros. Grande parte dos títulos, como conta Bruno, compõe uma lista sobre literatura negra elaborada para educadores. “Essa listagem feita pela Companhia das Letras para os professores se cruzava com os critérios que nós tínhamos construído, que eram: a maioria dos autores precisam ser negros, o livro tem de ser uma literatura negro-afetiva, precisa conter personagens negros, em narrativas de felicidade”, detalha. Bruno contou ainda que dez dos títulos que eles receberam para compor o acervo são especificamente materiais de estudo para educadores, um pilar muito importante do Encrespadinhos.

Os jovens do coletivo fazem questão de promover trocas também com os docentes, que participam das leituras e das atividades. “Os professores e a gestão das escolas são fundamentais para a construção desse diálogo”, diz o idealizador do Encrespadinhos. “É um momento muito fértil para perceber como as crianças tratam, verbalizam e como se comportam diante da questão racial”, explica. Esse é um ponto fundamental, já que a escola precisa dar continuidade e garantir que as práticas e os diálogos permeiam o dia a dia e as vivências dos alunos, independentemente das mediações.  

Entenda como o projeto Encrespadinhos funciona na prática

Depois da escolha do livro, feita pelos integrantes do Coletivo, dois mediadores vão até a escola para a prática. Antes do início das atividades, eles organizam um momento de formação e diálogo com os educadores e com a gestão. Então, acontecem compartilhamentos não só sobre as atividades e leituras que serão realizadas com os alunos, mas sobre educação antirracista e representatividade, entre outros temas. Em seguida, vem o encontro com as crianças. 

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“Antes da leitura, pensamos em alguma dinâmica ou brincadeira que apelidamos de quebra-gelo”, diz Bruno. A atividade pode variar, mas o coletivo tenta trazer algo que tenha vínculo com a cultura afro-brasileira, com literatura ou com musicalidade. Então, iniciamos a mediação da leitura com as crianças - sempre com atenção às reações dos participantes. No final, é feita uma pergunta relacionada ao livro, que estimule a discussão. “A ideia é incentivar as crianças a refletirem sobre a leitura. Ainda há uma parte da sociedade que acha que elas não são capazes de fazer reflexões acerca de assuntos complexos”, acrescenta ele. E é bem pelo contrário… 

Um dos encontros mais marcantes do Encrespadinhos, para Bruno, foi o dia em que o livro escolhido foi Aqui e aqui, de Caio Zero (Companhia das Letrinhas). “É a história de um menino que sempre se pergunta como ele dorme em casa e acorda na casa da vizinha. É um ótimo livro para conversar com as crianças também sobre questões de trabalho. Eu estava lendo e mostrando as ilustrações, quando uma das crianças levantou a mão e falou: ‘Nossa, tio Bruno, esse menino parece com você, o cabelo dele, a cor da pele’. Essa história me marca porque, primeiro, ele soube reconhecer na história um personagem que se pareceu comigo - e também com ele, mas também por ser uma história que se parece tanto com as histórias das nossas mães e dos nossos pais e, assim, traz uma proximidade", resume.

"Muito da literatura infantil, sobretudo da literatura negro-afetiva tem se aproximado cada vez mais das realidades que de fato existem nas quebradas, nas periferias do Brasil. Não são mais aquelas histórias que são distantes da gente”, Bruno Souza, idealizador do Encrespadinhos

Aqui e aqui, Caio Zero

Aqui e aqui, Caio Zero

Ele também destaca a atividade que o Encrespadinhos fez com as crianças ao ler Da minha janela, de Otávio Junior (Companhia das Letrinhas). “Nesse dia, fizemos uma dinâmica diferente. Dividimos as crianças em pequenos grupos e demos a cada um uma cartolina grande, com uma janela desenhada. Pedimos que os alunos desenhassem o que viam de suas janelas”, conta Bruno.

As respostas, segundo ele, foram variadas. Houve quem chamasse atenção para as desigualdades, mostrando que viam pessoas pedindo comida, mas houve também quem trouxesse abundância, contando que viam a vizinha passeando com o cachorro, crianças brincando ou que não viam nada porque havia um muro na frente da sua janela. “Aí, a conversa enveredou para: será que deveria ser um direito de toda a criança poder ver coisas bonitas e legais da janela? Foi muito interessante trazer a percepção das crianças sobre o que elas consideram bonito, a partir dessa perspectiva e, ao mesmo tempo, ver que as crianças periféricas já têm esse contato com as desigualdades e já conseguem nomear algumas delas”, pontua. 

Da minha janela, Otávio Junior

Da minha janela, Otávio Júnior

Prontos para decolar

O projeto Encrespadinhos tem apenas meio ano de prática, mas, nesse tempo relativamente curto, já provocou várias transformações dentro dos territórios em que o coletivo atuou. A expectativa é que, no próximo ano, o escopo seja ampliado. Bruno conta que eles pretendem expandir as mediações para pelo menos mais duas escolas, além de começar a trabalhar na formação de mediadores. Para isso, por enquanto, eles contam com o apoio da Companhia das Letras, que tem doado títulos e acompanhado todo o processo, e também do Instituto Brasileiro de Estudos de Apoio Comunitário (IBEAC), que acompanha e facilita a articulação com as escolas. Mas a ideia é ir ainda mais longe. 

As crianças se identificaram com o livro Aqui e aqui, de Caio Zero

As crianças se identificaram com o livro Aqui e aqui, de Caio Zero

“Nossa estratégia para o ano que vem é apresentar esse projeto, nos inscrevendo em editais e buscando parceiros e organizações que possam ajudar a financiar, porque pretendemos remunerar esses mediadores de leitura que vamos formar no ano que vem”, diz Bruno. Isso faz parte também da luta contra o racismo. “Acreditamos que remunerar jovens negros que executem o projeto Encrespadinhos nas escolas de seus territórios também representa uma ação antirracista”, aponta. “É um jeito de fazer o dinheiro circular pela comunidade, de garantir que aquele jovem continue estudando e que tenha uma formação continuada e acompanhada”, afirma. 

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Bruno lembra, por fim, que escolas, coletivos e organizações que queiram conversar mais sobre o Projeto Encrespadinhos, são bem vindos para construir diálogos, fazer trocas e pensar novas ideias. Escolas públicas que queiram receber o Projeto Encrespadinhos também podem entrar em contato pelas redes sociais ou por e-mail. Para ele, parcerias como a que o coletivo tem com a Companhia das Letras ajudam a influenciar colaborações de outras organizações, no sentido de apoiar projetos literários nas periferias. “É um jeito de construir e promover a formação de leitores e também de combater as desigualdades sociais que ainda existem”, completa. E que venha a próxima geração! 

 

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