Lei 10.639 completa 20 anos: avançamos na educação antirracista?
Em 2003, quando a Lei 10.639/03 foi sancionada para incluir no currículo de todas as escolas a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, Lavínia Rocha estava começando o primeiro ano do que hoje chamamos de ensino fundamental. Ela faria parte da primeira geração que viveria uma mudança na ótica do ensino. Talvez Lavína receberia uma outra visão da história, menos eurocêntrica, que faria emergir aspectos da riqueza e da complexidade da história, da cultura e da literatura africanas, até então escanteadas. Talvez entendesse como elas se entrelaçam com a história brasileira - não mais apenas sob o ponto de vista do colonizador europeu -, trazendo uma nova visão sobre seu entorno e sua própria história. Mas será que para Lavínia e para milhões de crianças brasileiras nesses vinte anos, de fato, a lei provocou mudanças no ensino e no avanço da educação antirracista?
Lei tem 20 anos, mas a cultura, história e literatura afro-brasileira não são ensinadas de maneira contundente na maioria das escolas
Lavínia, hoje com 26 anos, não só entende muito do assunto, como também passa seu conhecimento adiante. Ela se tornou escritora, palestrante e professora de História. Um vídeo em que ela mostra uma experiência realizada enquanto lecionava para alunos do 5º ano do Ensino Fundamental viralizou na internet, justamente por isso. As cenas revelam as ideias que os alunos tinham ao ouvir a palavra “África”, antes de terem aulas sobre o tema. Eles mencionam o calor, a pobreza, os escravizados e as doenças. Corta a cena.
Em uma nova tentativa, a professora faz a mesma pergunta depois de os alunos terem algumas aulas específicas sobre o continente e as respostas mudam completamente, além de aumentarem, em quantidade e intensidade: as crianças, empolgadas, disputam a vez de falar e mencionam ouro, cobre, conhecimento em agricultura, divindades de religiões como a umbanda e o candomblé, turbante, pente e muito mais.
Mas tudo o que Lavínia aprendeu não foi na escola, nos anos que se seguiram à sanção da Lei 10.639, enquanto ela frequentava o ensino fundamental, o ensino médio ou mesmo a universidade. Foi fruto do seu interesse particular. “Não tive essa educação que a lei propõe. Não sou o ‘pós-lei’ que quem criou essa lei sonhou”, afirma, em entrevista ao Blog da Letrinhas. “A lei existe, mas é falha. Existe para quem quer cumprir, ou seja, parte de um lugar privado, do esforço pessoal de quem considera essa bandeira importante. Se você acredita nisso, cumpre essa lei. Se não, simplesmente ignora”, avalia.
71% dos municípios não cumprem a Lei 10.639
Tragicamente, a experiência de Lavínia não é exceção. Um levantamento recente do Instituto Alana e do Geledés mostrou que a Lei 10.639 não é cumprida em 71% dos municípios brasileiros. O estudo realizado com 1.187 Secretarias Municipais de Educação, o equivalente a 21% das redes municipais de ensino do Brasil, sugere que a cada dez escolas, somente três realizam ações consistentes para implementar o ensino de história e cultura afro-brasileira.
“A lei tem sido importante para apoiar professores e profissionais da educação que já são comprometidos com práticas antirracistas. É na Lei 10.639/03 que esses profissionais se apoiam para fazer um enfrentamento direto nos seus territórios”, aponta Beatriz Benedito, analista de políticas públicas do Instituto Alana. “Ela precisa, porém, estar incorporada nas estruturas administrativas da gestão pública, para que haja intencionalidade política de enfrentar o racismo de frente e garantir o direito de crianças e adolescentes negros e não negros de conhecerem e valorizarem suas histórias e culturas”, acrescenta.
Confira aqui o material em PDF do projeto Por uma educação antirracista, com sugestões de títulos para apoiar a implementação efetiva das leis
A pesquisa mostrou também que existem exemplos de escolas com boas práticas na implementação da lei. Iniciativas de seis municípios trazem indicativos importantes sobre o que funciona - e pode ser replicado. Segundo Beatriz, o Alana divulgará esta análise qualitativa, mostrando quais são as ações para, quem sabe, inspirar outras instituições, em breve, em uma segunda fase da pesquisa. “Vamos apresentar os casos de Belém (PA), Cabo Frio (RJ), Criciúma (SC), Diadema (SP), Ibitiara (BA) e Londrina (PR). São municípios que identificamos como bons casos de implementação”, diz a analista.
A grande maioria dos municípios, no entanto, não desempenha ações consistentes de promoção da cultura e da história africana e afro-brasileira. É comum que a pauta seja limitada a datas comemorativas, como o Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro, ou apenas aborde a cultura afro-brasileira em momentos pontuais, quando, o importante seria que isso estivesse incorporado aos currículos e presente no dia a dia. “A pedagogia do evento ainda é muito forte nessa agenda e por isso precisamos reforçar a importância de incluir o ensino da história e cultura africana de forma consistente ao longo do ano, em diferentes campos do saber”, diz Beatriz.
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Para a professora Lavínia, a lei é muito vaga, nesse aspecto, o que dificulta a aplicação prática. “A lei diz que é preciso trabalhar a cultura afro-brasileira e africana em literatura, artes e história. Então, será que, se a escola colocar lá em novembro, no Dia da Consciência Negra, um trabalho que envolva essas três disciplinas, já está cumprindo? É isso o que se espera?”, questiona.
A lei é um passo muito importante para a história do país, mas é muito pouco. Precisamos de alterações reais no currículo.
(Lavínia Rocha, professora e historiadora)
O que falta para tornar realidade uma educação antirracista?
Em um país como o Brasil, onde é costume varrer para baixo do tapete questões fundamentais da nossa história como a escravidão e a ditadura militar, a sanção da lei foi considerada uma vitória do movimento negro, antirracista. Ainda assim está longe de funcionar como deveria. "Vejo os vinte anos da lei com pouquíssimos avanços”, opina Lavínia. “A aprovação foi algo comemorado, mas não pode se limitar a pessoas que querem fazer diferente e que, em uma iniciativa pessoal, a colocam em prática. É uma lei federal, que está aí para ser seguida de forma irrestrita”, diz ela.
Mas, por que, afinal, uma lei que já existe há duas décadas não é cumprida? E por que nada é feito? Primeiro, segundo Lavínia, é preciso pensar no professor. “Muitas vezes, colocamos a culpa neles, mas, se você pensar na realidade da escola pública, com o salário que o professor tem, a necessidade de, às vezes, estar em dois, três turnos, trabalhando de manhã, de tarde e noite, a exaustão, a falta de material, a falta de estrutura… Como esse professor vai atrás da formação que não teve na graduação? Como vai se atualizar?”, indaga. Para ela, é preciso ter apoio político real, com cursos remunerados e acompanhamento, não só na escola, mas em nível municipal, estadual, federal. "Precisamos de programas que permitam que a aplicação dessa lei seja viável e não dependa apenas do interesse particular de um professor ou outro”, defende.
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Neste vídeo, a escritora e educadora Kiusam de Oliveira faz um resgate histórico da Lei 10.639, com fundamentação teórica que pode auxiliar professores e pessoas comprometidas com uma educação antirracista a adotar a lei por meio da literatura.
Beatriz, do Alana, vai na mesma linha e completa: “É importante ter no Plano Nacional de Educação, planos estaduais e municipais com diretrizes e metas específicas de educação para relações étnico-raciais, assim como na revisão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), e orientar o planejamento das políticas municipais a partir destes instrumentos. Além disso, é imprescindível ter estrutura de governança em nível federal e nos municípios, para acompanhamento e avaliação da implementação da lei e, para isso, ter ferramentas institucionais de monitoramento e avaliação da implementação da lei”.
Para a professora Lavínia, infelizmente, essas transformações não devem acontecer tão cedo. Ela lembra que vivemos, nos últimos anos, um cenário político muito difícil, de muita perseguição aos professores, sobretudo àqueles com ideias mais progressistas, com pedagogias mais críticas e engajadoras. “São muitos obstáculos, mas precisamos continuar a luta, que é uma disputa de narrativa o tempo todo”, afirma. “A educação é um lugar que precisa ser construído por pessoas que vão movimentar novos processos e novas formas de recuperar essa identidade perdida”, completa.
Os reflexos da lei no mercado editorial
A escolha dos livros didáticos e materiais escolares também faz parte desse processo de mudança e de aplicação das leis. Beatriz, do Alana, lembra que incorporar o compromisso antirracista nas práticas das secretarias, de forma transversal e intencional, é imprescindível. “Se for comprar livros, é importante escolher títulos que contemplem diferentes perspectivas de conhecimento, assim como pensar em materiais escolares que considerem todos os tons de pele e usar diferentes referenciais para abordar temas que já estão presentes na sala de aula”, diz ela. Embora os obstáculos existam, é essencial convocar os estudantes à reflexão crítica, além de se apoiar em referenciais teóricos menos hegemônicos.
Para ela, um dos avanços dos últimos anos foi justamente o crescimento do mercado de produção literária, sobretudo em relação à literatura especializada, tanto de autoras e autores negros, como de editoras. “É importante avançar na democratização da produção, difusão e acesso desses materiais às crianças e adolescentes, dentro e fora da escola. Também é importante valorizar esses profissionais que têm trabalhado arduamente para construir materiais de qualidade”, diz ela.
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Segundo Rafaela Deiab, editora executiva de Educação na Companhia das Letras, ao longo dos últimos anos, depois da sanção da lei 10.639, houve, sim uma mudança sensível no mercado editorial, que se acentuou na última década. “No princípio, publicações europeias e americanas com histórias africanas ou arte africana eram mais comuns, assim como autores brasileiros brancos falando sobre o nosso processo histórico com ênfase na mistura. Nos últimos tempos é perceptível a publicação de autores negros e indígenas nacionais e estrangeiros. São eles próprios narrando e ilustrando as histórias”, aponta.
Apesar disso, ainda há um percurso extenso a ser trilhado. “É importante sinalizar que ainda estamos longe do ideal”, complementa Débora Alves, editora do núcleo Infantil da Companhia das Letras. “O mercado editorial está, sim, mais aberto, mas ainda há muito a ser feito”, reforça.
Antes da lei, diversidade já aparecia como critério desejado
A literatura só passou a integrar os editais do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), do Ministério da Educação, que avalia e distribui livros didáticos, pedagógicos e literários para alunos e professores de escolas públicas em todo o país, em 2018, como lembra Rafaela. “Mas a diversidade já aparecia como um critério desejado”, ressalta.
Antes mesmo da sanção da lei, existiam autores que publicavam obras com esse olhar para a diversidade, mas eram poucos. “Dentro do catálogo da Companhia das Letrinhas já tinha sido publicado o Histórias da Preta, de Heloisa Pires Lima, em 1998, e Histórias de índio, de Daniel Munduruku, em 1996, que são grandes marcos na literatura infantil composta por autores negros e indígenas. Em 1995, Sonia Rosa também já tinha publicado O menino Nito”, aponta Rafaela.
“A promulgação da lei, em 2003, fez com que a universidade passasse a ter cadeiras de história, geografia, literaturas e culturas africanas e afro-brasileira. Iniciam-se também processos estruturados de formações de educadores e de educação para as relações étnico-raciais. Nesse sentido, uma demanda vai se construindo, bem como conhecimento e especialistas que passam a publicar”, explica ela.
A partir de então, a publicação de livros com autores, protagonistas e temáticas que abordam a cultura africana e afro-brasileira se acelerou. “Ampliamos bastante a representatividade em nosso catálogo”, afirma Ana Paula Tavares, editora executiva do núcleo Infantil da Companhia das Letras e editora da Pequena Zahar.
De fato, a aprovação da lei impactou vários setores ligados à educação, entre eles, o mercado editorial. Ainda que a ampliação da oferta de livros com olhar para a diversidade, em especial para as relações étnico-raciais e para a valorização da cultura africana e afro-brasileira, seja indutora da aplicação da lei, apenas disponibilizar materiais não basta.
“A realidade é muito mais complexa, pois o racismo, no Brasil, é algo que afeta as instituições. O mercado editorial é apenas uma possibilidade de mudança. Sendo assim, primeiramente, precisamos reconhecer essa lacuna e buscar dar visibilidade para autores e ilustradores incríveis que ainda não foram publicados”, reflete Débora. “Não há como vislumbrar a transformação da sociedade sem considerar o respeito e a valorização da diversidade”, completa.
Livros que ajudam a mergulhar na história e na cultura afro-brasileira
Para um período de duas décadas, os avanços na implementação da lei deixaram a desejar. Mas desistir não é uma opção. E a leitura, especialmente com a nova geração, pode ajudar a construir novas perspectivas sobre representatividade, sobre a cultura e a história africanas e sobre nossas próprias origens. Elaboramos uma lista com títulos merecem ser lidos - e prestigiados! - em casa e nas salas de aula. Confira!
Aqui e aqui, Caio Zero (Companhia das Letrinhas)
Um menino está diante de um grande enigma: toda noite, ele vai dormir na própria cama, mas acorda em um quarto na casa da vizinha. Ele então dá início a uma investigação: seria um portal mágico entre as casas? Ou extraterrestres que o carregavam durante a madrugada? Com um traço cativante, o autor e ilustrador carioca Caio Zero retrata de forma única a curiosidade e o encanto que só pertencem à infância - e como certas descobertas nos transformam para sempre.
Os dengos na moringa de voinha, Ana Fátima (Brinque-Book)
A simplicidade dos momentos cotidianos guarda emoções inesquecíveis que podem ser encontradas no calor de um abraço, no cheirinho de comida caseira ou na alegria de compartilhar uma dança. Essas sensações que permeiam lembranças e revelam a importância das vivências e dos afetos. Conhecer e apreciar a ancestralidade é uma maneira de valorização da própria história, afinal.
Nesse livro, as relações familiares e a infância, reveladas pela escrita poética de Ana Fátima e pelos traços delicados de Fernanda Rodrigues, aproximam os dengos do passado tornando-os parte do presente. E quem conduz os leitores nesse texto construído com palavras de origem banto (quimbundo) é a moringa - uma vasilha de barro muito utilizada em territórios quilombolas -, que também é parte da família.
Uma aventura do Velho Baobá, Inaldete Pinheiro de Andrade (Pequena Zahar)
Quando um velho baobá nativo das savanas da África decide atravessar o oceano Atlântico para encontrar seus parentes em terras brasileiras, somos convidados a acompanhar uma jornada de encontros e momentos de grande emoção. Entre relatos de luta pela sobrevivência e descaso, mas também de muita solidariedade e perseverança, o Velho Baobá deixará uma mensagem de ânimo e esperança durante seu percurso, alegrando-se especialmente com os frutos das novas gerações, destinadas a se transformarem no maior tronco do mundo.
Vista por muitos como símbolo de resistência africana no Brasil, o baobá pode chegar a viver mais de mil anos. E, nesta narrativa, testemunha tempos imemoriais, como um símbolo de conexão entre o mundo sobrenatural e o mundo material.
Tayó em quadrinhos, Kiusam de Oliveira (Companhia das Letrinhas)
Tayó é uma menina animada, criativa e que adora brincar e aprender. Ao lado de seu amigo Kayodê, ela nos apresenta parte de seu mundo e de suas reflexões em tirinhas coloridas e divertidas. Com ajuda de Tayó, os leitores vão conhecer conceitos como racismo, ancestralidade e machismo e descobrir como questionar atitudes que não são legais. Ela é uma menina empoderada, pronta para mostrar como as crianças podem fazer a diferença!
Neste livro, a autora Kiusam de Oliveira fala de temas contemporâneos com uma linguagem descontraída e acessível e ilustrações da grafiteira e artista plástica Amora. Kiusam também é autora de Omo-oba: histórias de princesas e príncipes, pela Companhia das Letrinhas, no qual reconta mitos iorubás.
Amoras, Emicida (Companhia das Letrinhas)
Na música Amoras, Emicida canta: "Que a doçura das frutinhas sabor acalanto/ Fez a criança sozinha alcançar a conclusão/ Papai que bom, porque eu sou pretinha também". E é a partir desse rap que um dos artistas brasileiros mais influentes da atualidade cria seu primeiro livro infantil e mostra, através de seu texto e das ilustrações de Aldo Fabrini, a importância de nos reconhecermos no mundo e nos orgulharmos de quem somos. Emicida também lançou pela Companhia das Letrinhas o livro E foi assim que eu e a Escuridão ficamos amigas.
Histórias da Preta, Heloísa Pires Lima (Companhia das Letrinhas)
O livro Histórias da Preta fala de um povo que veio para o Brasil à força. Homens, mulheres e crianças escravizadas, distantes de suas terras, foram obrigadas a exercer todo tipo de trabalho. Perderam toda a liberdade. Mas apesar do sofrimento, fizeram do Brasil sua segunda casa.
Como é ser negro neste país? Faz diferença ou tanto faz? Reunindo informações históricas, a autora Heloisa Pires Lima fala sobre a população negra no Brasil, com a experiência de quem já foi alvo de racismo.
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