Como é ser tradutor de literatura infantil?
Olavo Bilac e Monteiro Lobato, além de autores consagrados, também foram tradutores de literatura infantil. Bilac disponibilizou para os pequenos leitores brasileiros o clássico alemão Juca e Chico (Pulo do Gato, 2012) e Lobato verteu para o português obras como Alice no país das maravilhas, Pinóquio, Viagens de Gulliver e muitos contos de fada. Celebremente, o criador do Sítio do Picapau Aamarelo achava que, naquela época, as traduções de livros estrangeiros infantis disponíveis no Brasil eram meio chatas, cheias de termos difíceis de entender – daí resolveu ele mesmo traduzir.
Transcrever um livro de um idioma a outro requer, além do domínio dos dois, talento para escrever, já que as traduções são também uma recriação em outra língua. Como a experiência de Lobato mostra, esse tipo de reescrita pode ter mais ou menos sabor e capturar ou não o encanto da obra original.
E como é traduzir livros infantis nos dias de hoje?
Para Gilda de Aquino, que já traduziu mais de 300 livros (!!) em 25 anos para a Brinque-Book, é preciso pensar como o autor e como a criança. “Antes de começar qualquer tradução, é preciso ler com cuidado e atenção o texto e procurar saber um pouco sobre o autor para poder penetrar no imaginário dele, saber o que o levou a escrever aquele texto. A tradução literal não existe, o tamanho das palavras é muito diferente; é preciso pensar e estudar o que encaixa”. São dela as traduções de clássicos como Bruxa, bruxa, venha à minha festa, Carona na vassoura e O Grúfalo.
Guilherme Semionato – que também é autor, pesquisador e leitor voraz de livros infantis - está no início da carreira e, para ele, “ser tradutor é um prolongamento quase natural não só da minha carreira profissional como revisor e preparador de texto, mas também do amor que eu tenho pela literatura que crianças e jovens leem”. É dele a tradução de Rã e Sapo são amigos, clássico norte-americano do autor Arnold Lobel (que também foi indicado por Guilherme para publicação), lançado em outubro pela Companhia das Letrinhas.
Um clássico da literatura infantil norte-americana,
traduzido por Guilherme Semionato. Leia +.
A tradutora Julia Bussius, que já foi editora da Companhia das Letras, diz que traduzir livros ilustrados é uma das particularidades do trabalho com os infantis. “O livro ilustrado requer cuidados específicos para que se preserve a sintonia entre texto e imagem. A forma do texto também pode mudar, às vezes há em versos, rimas – tudo isso traz novos desafios. Mas para a prosa, em geral, a dificuldade é a mesma. Um autor de livros infantis já terá a preocupação com o vocabulário mais próximo do universo da criança na língua original, então o tradutor deve cuidar para trazer esse mesmo tom para o português”. Os livros da querida autora Susanne Straβer, como Bem lá no alto, Muito cansado e bem acordado e Baleia na banheira, todos da Letrinhas, foram traduzidos por ela.
Livro foi traduzido do alemão para
o português por Julia Bussius. Leia +.
Para Luís Girão, que traduz, entre outras línguas, do coreano para o português, trabalhar com livros infantis é sua grande paixão: “Pra mim, é como traduzir poesia, pois precisamos de muita precisão para traduzir uma frase de poucas palavras em uma mensagem completa e extremamente significativa na composição do livro - ainda mais por serem livros que estabelecem relação de significação com outras linguagens, como a visual, a gráfica, a objetual etc”.
Para conhecer melhor a trajetória única desses tradutores e tradutoras de infantis, dá uma olhada na entrevista abaixo:
Como você começou a sua carreira de tradutor(a)?
Guilherme Semionato: Eu comecei não só minha carreira de tradutor na Companhia das Letras como também um trabalho de indicação editorial. Não há um nome preciso para essa atividade, talvez porque fique muito restrita aos editores/publishers e não tem tanta gente assim fora das editoras fazendo isso. Mas eu não dei muita bola para o jeito tradicional de se fazer as coisas e fui adiante. Para mim, esse lado sem-nome (indicação) acaba sendo mais forte que o lado com-nome (tradução), porque boa parte dos livros que adoraria trazer para cá foram escritos em línguas que não leio: alemão, norueguês, grego, holandês... Já me deixaria mais do que satisfeito contribuir para a publicação desses textos sem traduzi-los.
Julia Bussius: Comecei meio sem querer. Trabalhava na editora Cosac Naify e um dia apareceu a chance de traduzir um livro infantil do alemão que seria publicado. Depois saí da editora e fiquei um tempo só como free-lancer, e assim foram surgindo outros trabalhos de tradução de artigos, capítulos de livro e depois novos livros infantis. Antes disso, frequentei por alguns anos uma oficina de tradução no Goethe Institut de São Paulo, com o genial professor Alfred Keller. Aprendi muito com ele e com os colegas desse curso. Mas acho que o fato de ser editora já me deixava muito próxima às questões da tradução, mesmo antes de começar a traduzir.
Luis Girão: Comecei a trabalhar com tradução em 2005, de maneira informal e bastante ávido de aprendizado (época em que estudava francês formalmente e coreano informalmente). Na época, meu foco era exercitar essas línguas que me interessavam enquanto traduzia textos de formas distintas: letras de música, notícias sobre música, escritas ficcionais derivativas (fanfics), mesmo alguns gibis. A curiosidade para construir uma mensagem final que trouxesse o que antes me era segredado pela barreira linguística, definitivamente, ganhou morada em mim.
Você traduz de quais línguas? Pode contar a sua história com esses idiomas? Qual deles considera mais complexo de verter para o português e o mais "fácil"?
Gilda de Aquino: Fui alfabetizada em inglês pois meu pai era americano. E, minha mãe fez questão que aprendêssemos vários idiomas na infância. Então tivemos uma governanta alemã e uma professora particular de francês. Aos 5 anos ingressei na Escola Americana do Rio de Janeiro onde, na época, as matérias eram todas dadas em inglês. No 2º grau (ensino médio), havia aula de alemão e francês, e como eu já falava, aproveitei para aprender a gramática. Por isso é que, além dos livros em inglês, traduzi alguns em francês também. Para mim, o alemão é a língua mais difícil para traduzir devido às declinações que não existem nem no francês nem no inglês. A língua mais fácil para mim (depois do inglês, claro) é o francês, por ser uma língua neolatina, tal como o português.
Guilherme Semionato: Inglês e espanhol. Ademais, posso traduzir livros ilustrados e para leitores iniciantes do francês e do italiano.
Julia Bussius: Tenho traduzido sobretudo do alemão, mas tenho feito algumas traduções do inglês também – e gosto muito. O alemão é sem dúvida mais trabalhoso, exige sempre muita pesquisa e atenção na transposição das frases, pois a língua tem uma estrutura bem diferente do português. Eu tenho contato com a língua desde pequena, porque meus avós eram alemães e essa é a língua materna do meu pai. Minha avó cantava as cantigas de criança sempre em alemão, nossa casa tinha muitos livros infantis vindos da Alemanha, a cultura alemã sempre foi presente.
Mas só fui aprender mesmo a língua quando estava na faculdade e comecei o curso no Goethe, em 2002. Continuo estudando desde então (risos). Para mim, a facilidade maior do inglês está no contato diário com o idioma, ouço, leio e escrevo em inglês o tempo todo, então naturalmente o vocabulário se expande muito. Já o alemão é menos constante, é preciso um movimento ativo para se aproximar do idioma. Meu aprendizado das línguas sempre foi muito "de ouvido".
Luis Girão: Trabalhar com a língua coreana é desafiador por ela ser uma linguagem verbal aglutinante, altamente visual (o alfabeto coreano, Hangeul, é escrito com base nas formas da boca ao pronunciar cada vogal e consoante) e carregada de sonoridades expressivas (são mais de 2000 onomatopeias registradas). Toda a composição frasal do coreano objetiva chegar ao final, quando alcançamos o verbo da sentença (a estrutura é sujeito + objeto + verbo). Sendo assim, acompanhar uma frase na língua coreana é sempre aguardar pelo sentido da frase, que está nos aguardando ao final. Fora isso, a língua coreana é majoritariamente construída em oxítonas, ou seja, a sílaba tonal das palavras é a última.
Como não se deixar envolver pelo mistério do que se lê/ouve quando se tem acesso a essa língua? Além disso, há todo um jogo de imagens que se formam pela combinatória de sílabas, o que é ainda mais desafiador para quem traduz do coreano para o português, dado que nossa língua é muito mais linear. Acredito que traduzir do coreano será sempre um desafio para o tradutor, pois a recomposição de estruturas, de mensagens, de imagens exige não apenas conhecimento do idioma, mas uma noção das imagens guardadas nos caracteres coreanos, que trazem uma tradição, mas são móveis o suficiente para acolher palavras estrangeiras. Traduzo do inglês e do francês também.
Qual a diferença entre traduzir para crianças e para adultos? Ela existe mesmo?
Gilda de Aquino: Sim, há sem dúvida muita diferença entre traduzir livro infantil e de adulto, a começar pelo vocabulário que tem de ser adequado às diferentes idades. Cada faixa etária tem sua própria linguagem e nos livros infantis existem certos termos, certas gírias, que são proibidas, como por exemplo a palavra ‘chato’. Na “adulta” tudo é permitido.
Julia Bussius: Acho que a maior diferença é entre traduzir um texto com ilustrações e outro que é apenas texto. O livro ilustrado requer cuidados específicos para que se preserve a sintonia entre texto e imagem. A forma do texto também pode mudar, às vezes há em versos, rimas – tudo isso traz novos desafios. Mas para a prosa, em geral, a dificuldade é a mesma. Um autor de livros infantis já terá a preocupação com o vocabulário mais próximo do universo da criança na língua original, então o tradutor deve cuidar para trazer esse mesmo tom para o português.
Luis Girão: Dentro da ARA Cultural, empresa criada em 2020 ao lado de minha mestre e sempre professora Yun Jung Im, que é a principal tradutora de literatura coreana no Brasil, estamos experimentando gêneros distintos (livros infantis, contos folclóricos, contos adultos, quadrinhos, mesmo vendo possibilidades de romances adultos) de ficção coreana para o português. Confesso que tenho meus interesses por coletâneas de contos e novelas direcionadas ao público jovem adulto, mas a minha maior paixão é trabalhar com livros infantis: pra mim, é como traduzir poesia, pois precisamos de muita precisão para traduzir uma frase de poucas palavras em uma mensagem completa e extremamente significativa na composição do livro - ainda mais por serem livros que estabelecem relação de significação com outras linguagens, como a visual, a gráfica, a objetual etc.
Se existe uma diferença entre traduzir obras infantis e adultas, eu diria que essa diferença se mostra a depender do gênero: traduzir quadrinhos adultos, por exemplo, exige uma maior atenção para a oralidade das frases e para a descrição pontual da narração, dado que muito do texto acontece também entre desenhos e quadros sequenciais. Já trabalhar com livros ilustrados, compostos pela relação entre palavras e imagens em peso de equivalência, é tomar cuidado para não ficar descritivo demais no texto verbal, uma vez que o texto visual narra à sua maneira e duplicar esse mostrar seria não muito produtivo.
Já traduzir um conto adulto, pela brevidade da narração, precisamos estar atentos às ações e reações daquilo que nos leva no texto verbal (narrador, personagem, descrição etc.). Por sua vez, atentar para as estruturas de um romance demanda um fôlego para realizarmos nosso papel, de pontífices, no tempo do texto de partida, em seus instantes mais prolongados ou ínfimos.
Como é o seu processo de trabalho?
Gilda de Aquino: Antes de começar qualquer tradução, é preciso ler com cuidado e atenção o texto e procurar saber um pouco sobre o autor para poder penetrar no imaginário dele, isto é, o que o levou a escrever aquele texto.
Julia Bussius: Com os livros ilustrados, gosto de ler tudo primeiro e traduzir os textos em post-its, colados na página em que o texto deverá entrar. Faço isso como uma espécie de rascunhão. Depois passo para o Word e vou afinando o texto. No caso dos textos mais longos, acho muito importante ter o original digitalizado, pois vou traduzindo cada parágrafo e, em seguida, apago o texto original, tentando ao máximo evitar saltos. Uso diversos dicionários on-line e acho ótima a ferramenta de pesquisa com imagens, por exemplo, que pode ajudar a decifrar o que é um objeto, um bicho, uma planta, um detalhe arquitetônico pouco conhecido. Também nos casos de textos mais longos costumo fazer um rascunho, decifrando primeiro as questões mais cabeludas e deixando vários comentários, para depois editar a tradução e entregar um resultado bem-acabado.
Luis Girão: Eu trabalho majoritariamente em coletivo (coordeno um grupo de tradução literária formado por egressas do curso de Língua e Literatura Coreana da USP, ex e eternas alunas da professora Yun Jung Im), então o meu processo envolve ler original e traduções alheias de um mesmo texto para, nas discussões das diversas possibilidades, chegar a uma versão que traga um tom de cada tradutora. Essa atenção de revisão e edição é extremamente importante para agir como tradutor, pois observo como uma única construção simbólica pode ser lida por diversas frentes, ampliando-se naquilo que é comum.
Já no meu processo individual, quando leio originais para apresentá-los, eu busco as principais cores que um texto traz e que me agarram. Dito de outro modo: ao ler uma obra original em coreano, vou sentindo o que se manifesta para os meus olhos, ouvidos, braços, mãos, atentando para o como cada uma dessas cores criar uma vibração no meu corpo. Em geral, leio primeiro em silêncio, depois repito algumas frases em voz alta e consigo chegar na intenção aí: ao vocalizar uma frase. É uma prática possível e funciona para mim quando quero captar significados escondidos no texto escrito. Porém, em geral, leio os textos e vou anotando expressões que são desafiadoras de trazer para o português, já que os usos são particulares em cada obra.
Qual é o maior desafio na profissão de tradutor? E a grande delícia?
Gilda de Aquino: Para mim, o maior desafio na profissão de tradutor são os textos rimados, o que, nos quase 300 livros que traduzi para a Brinque-Book, não foram poucos. Aliás, fiz um trabalho para uma editora inglesa (Lost My Name), que foram 25 livros, todos rimados! A grande delícia é quando um livro traduzido por mim é adotado nas escolas. Outra delícia é conhecer pessoalmente os autores de cujas obras eu traduzi, tal como Stephen Michael King, autor australiano do best-seller O Homem que amava caixas e vários outros títulos de sucesso da Brinque-Book.
Guilherme Semionato: O maior desafio é entregar a tradução mais limpa e mais forte possível e, então, colocar na cabeça que o livro a ser publicado passará por um trabalho de edição e de revisão que vai alterar trechos do texto que entreguei. A grande delícia deve ser ver o livro pronto — alegria esta que terei em breve — e, enfim, encontrando leitores. Ou seja, é uma alegria sempre contínua e renovada, não tão diferente da de publicar uma história própria.
Julia Bussius: Para mim, o maior desafio é o tempo. Traduzir é um processo lento, que requer muita concentração e muitas e muitas horas de trabalho. Mas é preciso fazer isso caber nos prazos e existir com as outras atividades da vida, já que não sou apenas tradutora, e daí surge o sofrimento... A delícia é encontrar boas soluções, encontrar uma expressão perfeita, ver as coisas se encaixarem bem no texto.
Luis Girão: Penso que todo tradutor que se propõe a apresentar obras ainda não publicadas em línguas próximas ao português sente uma insegurança forte, atrelada a um desejo tão forte quanto de apresentar aquilo que ele considera um texto bom a ser lido em sua língua materna. É sempre uma aposta, nesses casos, pois o tradutor está oferecendo a futuros responsáveis pela publicação de uma obra coreana no Brasil o seu olhar e o seu gosto, muito particular, do que seria um bom título.
Estabelecer diálogos a partir dessas apostas é uma das grandes delícias. Mais ainda: quando gostam do que você apresentou e desejam trazer essas obras coreanas para o português junto com você, quem apresentou. E se for para confessar algo, eu diria que uma das maiores delícias de traduzir do coreano para o português é ler o texto traduzido em voz alta e ir sentindo aquelas cores que existiam no texto original, te afetando de outra maneira agora, pelas escolhas que você fez, pelos caminhos que você percorreu para tornar essa "ponte" possível.
Qual foi o primeiro livro infantil que você traduziu?
Gilda de Aquino: Foi um livro que foi lançado na primeira Bienal do Rio em que a Brinque-Book participou e que fez muito sucesso por ser bem parecido com o livro infantil da moda – Onde está Wally?, lançado pela Ed. Martins Fontes na mesma época. O nosso chamava-se Onde está Lisa? e brincávamos que ela era a namorada do Wally. Logo em seguida, veio um livro que continua fazendo um tremendo sucesso até hoje: Bruxa, bruxa, venha à minha festa. Criança adora personagens que dão um pouco de medo, tipo bruxa, lobo, fantasma etc.
Guilherme Semionato: Rã e Sapo são amigos é minha primeira tradução publicada, mas já tenho versões feitas de livros editados nos Estados Unidos, na Austrália e na França; estão à espera de editoras.
Julia Bussius: Estava escuro e estranhamente calmo, do Einar Turkowski, para a Cosac Naify.
Luis Girão: Trabalhei como consultor de tradução em uma obra coreana publicada em 2018, um conto da tradição popular, direcionada ao público infantil e, ali, já deu para sentir (e confirmar, já que sou pesquisador de literatura infantil) o meu gosto central por essas obras. Sobre a primeira obra traduzida: eu não saberia ainda afirmar qual delas sairá primeiro no Brasil. Dentro da ARA Cultural, já traduzimos umas seis obras infantis em menos de um ano (nenhuma delas ainda publicada). Todas essas traduções foram em formato de coletivo e de maneira colaborativa, então eu não posso dizer que se trata de uma tradução minha, mas nossa. É na troca com as integrantes do grupo de tradução, todos nós sob a mão experiente e generosa da professora Yun Jung Im, que meu trabalho flui, na soma com o de cada uma dessas tradutoras: todos aprendendo juntos. O que posso te adiantar é que nosso objetivo é trazer não só obras infantis, mas também infantojuvenis, juvenis e adultas para o português.
Tem algum infantil que foi seu preferido por algum motivo?
Gilda de Aquino: O meu preferido é um dos mais antigos – Guilherme Augusto Araujo Fernandes, de uma autora, Mem Fox, cujos livros foram todos traduzidos por mim. Conta a história de um menino pequeno que mora ao lado de um asilo de velhos e torna-se amigo deles. É emocionante!
Julia Bussius: Os livros da Lilli L'Arronge são um xodó. Perdi a conta de quantos dei de presente! E já li zilhões de vezes com meu filho. Texto e ilustração super simples, mas cheios de afeto, e com um olhar que capta muito bem a dinâmica da relação entre pais e filhos.
Livro de Lilli L'Arronge é um dos xodós
da tradutora Julia Bussius. Leia +.
Luis Girão: Por questões contratuais, eu não poderia dizer os títulos neste momento, mas um deles me cativou demais, me marcou demais. Contudo, eu havia sido fisgado por esse livro já na versão em coreano. Traz algo muito humano, muito das relações que nós estabelecemos com os outros (sejam esses outros humanos, animais, plantas, coisas etc.). Esse título, em especial, tem uma potência gigantesca guardada nas poucas e breves palavras que davam compasso frente ao domínio das ilustrações nas páginas.
Aquilo que me fez vibrar ao ler em voz alta (ou mesmo em silêncio, para dentro de mim) o texto original foi algo que sinto ter alcançado em meu processo de trazê-lo para o português: cada impacto de leitura breve. É um livro de fazer se emocionar por atentarmos à força que as palavras têm quando usadas para delimitar um instante de pura alegria e um outro de profunda solidão. Penso que em breve esse texto misterioso será revelado ao público brasileiro. Será que os leitores sentirão esses impactos? É um desejo de tradutor.
Tem alguma tradutora ou algum tradutor que seja uma inspiração para você?
Guilherme Semionato: Sem entrar no mérito do trabalho de tradução propriamente dito, eu admiro pessoas que, fora de uma editora (especialmente se são escritores), traduzem e recomendam a publicação de obras estrangeiras. Cito Ana Maria Machado, que selecionou e traduziu livros de Katherine Paterson e Alan Garner (Moderna), e Nilma Lacerda, que traduziu dois de Virginie Lou (Nova Fronteira) e O arminho dorme, de Xosé A. Neira Cruz (SM). À diferença delas, que se dedicaram menos à tradução e mais aos próprios livros, quero que essa proporção seja 50/50 no meu caso.
Julia Bussius: Para mim, alguns grandes nomes, inclusive da tradução de livros infantis, são Eduardo Brandão, Heloísa Jahn, Sergio Tellaroli. A incrível Ruth Rocha é uma tradutora muito divertida. Outros grandes mestres são Paulo Henriques Britto, Sônia Moreira, Rosa Freire D'Aguiar e Jorio Dauster, muitos outros.
Luis Girão: Muito antes de nos conhecermos e trabalharmos juntos, a professora Yun Jung Im era alvo de minha admiração. O que ela fez ao trazer poesia coreano para a língua portuguesa ao longo da década de 1990, e todas as outras obras que ela vem publicando desde os anos 2000 como tradutora principal, trazem algo que é dela. Ao lermos a primeira versão em português de A vegetariana, da autora coreana Han Kang, que chegou no Brasil em 2013, é possível sentir a preocupação em transmitir um ser diferente e inadequado como a protagonista dessa história - que, na realidade, chega até nós pelos olhares de outras personagens.
Mesmo ler e ouvir as traduções recentes de poesia - no canal do YouTube "Poesia Coreana" - que ela tem feito é sentir que há um respeito imenso pela língua coreana e uma paixão grande pelas imagens da língua portuguesa. São escolhas de palavras muito precisas, no ponto em que elas atingem o leitor de modo a ficar reverberando dentro dele por um tempo. Esse nível de atenção e sensibilidade, penso, é algo que todo tradutor de ficção (prosa ou poesia) deveria almejar, já que trabalhamos com a arte da palavra.
Para você, o que é ser tradutor?
Guilherme Semionato: Ser tradutor é um prolongamento quase natural não só da minha carreira profissional como revisor e preparador de texto, mas também do amor que eu tenho pela literatura que crianças e jovens leem. Um tempo depois de escrever meu primeiro livro, em janeiro de 2015, já tinha decidido que também queria atuar apresentando autores e livros para editoras e justificar sua publicação no Brasil: seria uma forma de juntar meu trabalho de antes com esse novo ofício/paixão que eu encontrei.
Nos últimos seis anos, acompanhei com atenção o que se publicou no Brasil e no exterior, e li muito — em papel, no Kindle, em livrarias, em bibliotecas reais e virtuais (Open Library), no YouTube; só não li esses livros de banho dentro da banheira, o resto eu li. Enfim, foi um período muito rico em que me construí como escritor — e, por que não?, estrategista. A vida de um escritor em início de carreira é encontrar espaços vazios no mercado e ocupá-los; mas, no meu caso, não pretendo preenchê-los apenas com os meus textos. Hoje eu consigo ligar livros estrangeiros inéditos a determinadas editoras brasileiras simplesmente por conhecer seu catálogo.
Júlia Bussius: Traduzir um livro, sobretudo de ficção, é fazer um verdadeiro mergulho na linguagem e no pensamento de um autor. É uma leitura muito próxima de uma obra.
Luís Girão: Ser tradutor é ser um engenheiro de pontes, um construtor de travessias, nunca claras ou firmes, mas sempre misteriosas e passíveis de novas e instigantes descobertas. Seria uma maneira metafórica, claro, de enxergar. Agora, se for para falar de maneira mais objetiva, ser tradutor é estabelecer pontos de conexão entre uma mensagem cifrada em uma língua e um receptor de mensagens cifrado em outra língua.
Você tem alguma "dica de ouro" para tradutores em início de carreira?
Gilda de Aquino: “Dica de ouro” eu não tenho. Só o que posso dizer é que o fato de alguém ter feito vários cursos de inglês não implica em ser boa tradutora. Tanto que existem cursos, na PUC, por exemplo, para formação de tradutores de filmes, tradutores simultâneos para congressos, seminários etc., mas para tradutores de textos não existe um curso específico. Outra vantagem que tive, além de ser bilíngue, é que na minha juventude não havia TV, muito menos computador, então, a minha geração foi acostumada com livros e histórias contadas por nossos pais, no meu caso livros em inglês, francês e alemão.
Julia Bussius: Observe o trabalho de outros tradutores, estude as boas traduções que você lê. Tente encontrar outros tradutores ou pessoas próximas a esse universo para discutir, compartilhar dificuldades, pedir ajuda. E traduza o que aparecer pela frente, sem dúvida aprendemos mesmo é com a prática.
Luis Girão: O que eu consigo afirmar com certeza para quem quer trabalhar com tradução, não apenas do coreano para o português: leia literatura (em coreano, em português, em inglês, na língua que for e que você tenha o mínimo domínio). Ler é uma das principais bases para quem trabalha com palavras em translado, pois o vocabulário está constantemente sendo desafiado e atualizado. Então: leia!
Fora isso, busque cursos formativos que auxiliem tanto na sua compreensão e conhecimento técnico da língua de partida quanto formações que fortaleçam e tornem o seu português ainda mais atento para alguns elementos que são próprios à criação de eventos com a palavra, ou seja, que são próprios à literatura: seja preparação de textos, tradução básica, tradução literária, revisão, edição, mesmo atividades que envolvam outras linguagens. Tudo isso te traz um repertório de compreensão da língua, mas nem só isso: te traz também um aprendizado sobre como essa língua é operada para construir imagens que nos levam para um lugar que nos faz esquecer da realidade física enquanto transpomos a ponte para essa realidade ficcional.