Stephen Michael King: "Meus personagens são uma versão mais colorida de mim mesmo"

Originalmente publicado no Blog da Brinque

O escritor e ilustrador Stephen Michael King

 Stephen Michael King/Arquivo pessoal

Era uma vez um universo em que havia um urso branco que acordava colorido todos os dias. Havia também um homem que amava caixas e que, com elas, criava delicadezas e presença com o filho. Nesse lugar, moravam ainda Pingo e Filó, dois amigos que resolvem descobrir o que acontece com a quinta-feira quando chega a sexta. Também tinha um caracol que não gostava da chuva amicíssimo de uma tartaruga louca por água. Isso sem contar os amigos incríveis Pedro e Tina, a espoleta da Duda e os fofos filhotes que moravam num lugar inusitado: o bolso de seu Totó.

Filhotes de bolso, de Stephen Michael King

"Filhotes de bolso", ilustrado por Stephen Michael King 

O universo do ilustrador e escritor australiano Stephen Michael King é imenso, colorido, rico, diverso, divertido e irreverente. Autor de mais de 50 obras - entre aquelas em que escreve e ilustra e as que assina a ilustração ao lado de parceiros como Margaret Wild e Janeen Brian -, o premiado artista amou os livros desde a infância. Filho de mãe professora e pai que se alfabetizou sozinho, ele encantou-se pelas histórias que os pais contavam e, de repente, notou que adorava fazê-las. "Minha mãe às vezes me lembra que eu costumava redesenhar as ilustrações das obras que eu não tinha gostado, refazendo de acordo com o que eu imaginava que elas tinham de ser."

A convite da Brinque-Book, o autor de textos e imagens se prepara para vir pela primeira vez ao Brasil (em 2018, para a programação da 64ª Feira do Livro de Porto Alegre e eventos em São Paulo). Ao Blog da Brinque, Stephen Michael King concedeu uma entrevista exclusiva, que você lê a seguir:

Brinque-Book: Livros fizeram parte da sua infância? Seus pais liam para você? Que tipo de leitor você era quando criança?

Stephen Michael King: Cresci numa casa repleta de livros. Não tínhamos muito dinheiro, mas sempre tivemos muitos livros. Minha mãe era professora e, por um tempo, foi diretora escolar. Meu pai aprendeu a ler sozinho, aos 21 anos. Ele conseguiu aprender o suficiente para ler autonomamente, mas nunca leu um romance inteiro. Meus pais se conheceram, se apaixonaram, e minha mãe o introduziu no mundo das histórias. Quando meu irmão e eu nascemos, meu pai não quis que perdêssemos a beleza dos livros. Ele lia para a gente todas as noites, às vezes inventando histórias, às vezes relendo nossas obras preferidas de novo e de novo e de novo.

Se pais e avós encontrarem tempo e espaço para lerem para suas crianças, possibilidades ilimitadas podem se desdobrar. (Stephen Michael King)

De que tipo de livros você gostava quando criança? E hoje? O que lê? 

Eu era um leitor como a maioria das crianças: animais, castelos, piratas...livros que me fizessem sentir triste ou feliz, como, por exemplo, a história de um cachorro que se perdia e, no final, era encontrado. A aparência do livro importava muito quando eu era criança. Minha mãe às vezes me lembra que eu costumava redesenhar as ilustrações das obras de que não tinha gostado, refazendo de acordo com o que eu imaginava que elas tinham de ser. 

Crianças amam histórias. Também amam tempo de qualidade com os pais, com os avós. No entanto, em um país como o Brasil, "formar" leitores ainda é um desafio. Um terço dos brasileiros jamais comprou um único livro. O que podemos fazer para engajar as crianças na literatura? 

Acredito que meu trabalho seja fazer livros os mais lindos que eu puder, para atrair as pessoas para dentro das minhas histórias. Meu pai me inspirou quando eu era um garoto. A hora de dormir era a melhor porque ele não estava ocupado trabalhando ou pensando em contas e em outras coisas de adulto. Nós simplesmente compartilhávamos histórias. Juntos. Minha mãe sempre dizia que os livros são a passagem para tudo: aprendizado, arte, aventura. Sobre a sua pergunta, não tenho muitas respostas, a não ser continuar fazendo o que estou fazendo, esperando que a mágica dos livros revele-se a si mesma. Não sei sobre o Brasil, mas acredito que, se pais e avós encontrarem tempo e espaço para lerem para suas crianças, possibilidades ilimitadas podem se desdobrar. 

 

"O homem que amava caixas", de Stephen Michael King (texto e ilustrações)

Como o desenho veio para a sua vida? 

Meu pai sempre dizia que eu adorava deixar marcas. Tudo o que eu precisava era de um graveto na terra ou de lápis e papel. Minha mãe e meu pai queriam que eu fosse um grande leitor. Vendo tantos livros quando criança, me apaixonei por essa arte. Quando pequeno, me lembro de tocar no desenho impresso no livro e, depois, esfregar os dedos, como seu eu tivesse tocado em um desenho "real". Eu sofri uma perda de audição que começou quando estava no primeiro ou segundo ano do Fundamental. Recebi um aparelho auditivo aos 13 anos. Todo esse período em que não ouvi fez com que a literatura escrita e ilustrada se tornasse minha forma de comunicação preferida.

Adoro que a arte possa ser calma, completamente silenciosa, e ainda assim dizer alguma coisa. (Stephen Michael King)

O que desenhar significa para você? 

Não consigo parar. Gosto de trazer ao mundo algo que não tenha sido visto antes. Cada desenho é como uma planta, que cresce da semente. Fico muito feliz por estar contribuindo - um pouco que seja - com as crianças, com seus pais, com o mundo. Nesta tarde, estou plantando duas plantinhas em um jardim próximo de casa. Vou regá-las e nutri-las. Fazer um desenho é parecido. Nutro uma ideia, ajudo a fazê-la crescer e adoro vê-la em plena floração. 

O desenho é considerado uma das primeiras linguagens da infância. Você nota que as crianças são mais sensíveis para compreender essa forma de expressão? 

Você conhece Reggio Emilia [cidade no norte da Itália, famosa por suas escolas infantis públicas, cuja pedagogia se baseia na pesquisa e nas artes como forma de expressar e compreender o mundo]? Há um lindo poema [sobre isso, escrito pelo idealizador das escolas de infância de Reggio Emilia, Loris Malaguzzi], "As Cem Linguagens". Acho que sempre soube e senti isso, mesmo quando muito pequeno. Há a dança, a música, a arte, a natureza... Às vezes, acho que os adultos se esquecem de todas essas linguagens. Eles sabem que as palavras podem ser poesia ou letras para uma música, que podem nos inspirar a grandes coisas. Mas as palavras dos adultos muitas vezes pensam demais neles mesmos, excluindo todo o resto. Adoro que a arte possa ser calma, completamente silenciosa, e ainda assim dizer alguma coisa. Pintar, desenhar, fazer, sorrir, ouvir, dançar... tudo isso me libera de ter de me expressar apenas com a minha voz.

Eu posso ser um pouco tímido no mundo real, então as personagens que crio são versões mais coloridas de mim mesmo. (Stephen Michael King)

Seus livros são repletos de felicidade, amor, relações, cores. O que inspira você e esse universo? 

Eu não sabia bem onde me encaixava, a qual lugar pertencia. Mas uma vez que encontrei meu lugar no mundo, fui feliz desde então. As relações e o amor me inspiram. Minha mulher, Trish, nossos filhos, nossa família, nossos bichos e nossa vida são as minhas principais fontes de inspiração. Eu posso ser um pouco tímido no mundo real, então as personagens que crio são versões mais coloridas de mim mesmo. Quando eu visito escolas, os alunos frequentemente me perguntam sobre como eu começo [um livro], como acho o final ou como sei quando acabar. Minha resposta é sempre a mesma: se estou me fazendo essas perguntas, então estou no caminho errado. Em primeiro lugar, preciso pensar o que estou tentando dizer, então tenho que pensar no que é que eu quero dar ao mundo. Desse modo, geralmente encontro algo que me faça sentir profundo. Quando sinto algo no meu coração e sei o que quero dizer ao mundo, então a história se encontra. Uma vez que encontro o coração, tenho muito pouco trabalho: eu só brinco, e a história se desdobra.

Com que frequência você desenha ou escreve? Tem uma rotina para isso? 

Sempre tive rotina, mas, agora, com 55 anos (em setembro de 2018), fico feliz em poder dormir quando estou cansado. Crio uma rotina sempre que começo um novo projeto...mas mesmo isso varia agora que sou mais velho. Durante o inverno, trabalho mais dentro de casa, durante o dia, quando está quentinho. No verão, prefiro trabalhar pelas manhãs, no estúdio, antes que o dia fique muito quente. Os projetos ganham vida própria, e eu estou sempre muito animado para trabalhar neles tanto quanto eu consigo. Equilibro meu trabalho com muito tempo com família e amigos. Família é prioridade. 

Como escolhe as técnicas que vai usar? 

Mantendo tudo simples. Eu mudei de técnicas ao longo dos anos, mas é sempre uma coisa de cada vez, passo a passo. Não gosto de usar um monte de técnicas. Se alguma coisa está capturando a emoção e se tudo o que preciso fazer é desenhar e pintar, perfeito. Agora, eu trabalho a maior parte do tempo no computador, mas tudo ainda é escrito à mão, pintado à mão e todas as texturas são feitas com tinta, à mão. 

(Texto atualizado em 23/2/23)

Este texto foi publicado originalmente no Blog da Brinque e estava hospedado no site da Brinque-Book. A editora Brinque-Book foi integrada ao Grupo Companhia das Letras em outubro de 2020 e a migração deste conteúdo para dentro do Blog da Letrinhas tem como objetivo somar conhecimentos, unificar os blogs e fortalecer a produção de conteúdo sobre literatura infantil, leitura e formação de leitores.
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