Lara Meana: basta oferecer a elas bons livros; as crianças farão o resto
5 de Março de 2018 às 18:23
Originalmente publicado no Blog da Brinque
"Não sou muito a favor das leituras obrigatórias, a menos que haja uma razão poderosamente literária para isso"
BB: O que falamos quando falamos de infância? Que criança é essa a que nos referimos hoje? Lara: A infância, como a juventude e a vida adulta, é, por definição, diversa. Assim somos os seres humanos. Além das diferenças pessoais, somam-se muitos fatores: sociais, econômicos, étnicos, familiares, de acesso à tecnologia, do tipo de relação com os adultos. Às vezes, tendemos a homogeneizar as crianças como coletivo, porque dessa forma nos é mais fácil estabelecer pautas, recomendações ou desenhar ações educativas. É certo que, como mediadores de leitura, tendemos a buscar livros universais, que possam agradar a uma maioria de crianças. É importante buscar também, no entanto, a maior diversidade possível, para que cada criança possa encontrar esse livro em que reconhecer-se, em que construir-se. Livros para rir, para assombrar-se, para perguntar-se, para reafirmar-se, para emocionar-se, para viver aventuras, para brincar. BB: Como você avalia as estratégias de formação de leitores nas escolas de infância e educação fundamental? Lara: Creio que nas escolas em geral exista uma instrumentalização excessiva da leitura e dos livros para fins educativos e, às vezes, também moralizantes. Por um lado, a ênfase na aprendizagem leitora está colocada na aquisição de conhecimentos. Por outro, os livros que se selecionam devem transmitir uma série de valores morais, muito mais que oferecer qualidade literária ou uma narrativa que interesse ao leitor. Na realidade, creio que não estamos formando leitores. Para mim, ler vai muito além de decodificação e compreensão. Ler tem a ver com o prazer estético, com a capacidade de relacionar o que lemos com o que vivemos, de expressar ou produzir um discurso novo. A leitura tem a ver com o assombro, com a curiosidade, com a identificação. A escola deveria despertar tudo isso e dar o impulso que vai colocar esse processo em movimento. Nós temos que colocar bons livros nas mãos do leitor. A criança fará o resto. BB: Os professores e pais brasileiros leem pouco, conhecem muito pouco de literatura propriamente. Como formar leitores quando não se é leitor? Lara: O gosto pela leitura é como um vírus: não se pode transmiti-lo se não se tem. Também é difícil recomendar leituras que não se tenha feito, das quais não se tenha desfrutado. Quem sabe o desafio esteja justamente em famílias e professores descobrirem os prazeres da leitura. De todo modo, às vezes nos esquecemos que grande parte de nossa bagagem cultural está na literatura tradicional, passada oralmente de geração em geração. Nem toda a literatura está nos livros. Compartilhar histórias é algo inerente ao ser humano, temos necessidade de contar e contar-nos. Quiça necessitamos voltar a nos conectar com essas histórias que nos habitam desde sempre e iniciar o caminho aí, compartilhando-as."Ler em voz alta, contar uma história, é um presente. E o é não só para as crianças, mas para nós, adultos, também"
BB: O que é importante, na sua opinião, para formar leitores na escola? Lara: Respeito ao ritmo leitor de cada criança, leitura em voz alta por parte do professor, fomentar conversas literárias em aula, deixar de focar a avaliação para escutar as opiniões das crianças sobre as leituras... BB: E em casa? Lara: Não há experiência mais mágica que compartilhar um conto, um poema ou uma canção com uma criança. É um momento de afeto e comunicação incomparável; quando as famílias o descobrem, não querem deixar de vivê-lo. E, no entanto, a pressão da escola para que as crianças "leiam sozinhas" depois de alfabetizadas faz com que adultos deixem de ler para os filhos, pensando que poderiam retardar o processo ou tornar as crianças "preguiçosas". Quando continuamos compartilhando a leitura, o que acontece na realidade é o contrário, o hábito se consolida, e os pequenos se tornam leitores mais competentes. BB: Nas escolas, as crianças têm livros obrigatórios. Elas poderiam participar da escolha desse acervo? Como ajudá-las a escolher melhor literatura em casa e na escola? Lara: Não sou muito a favor das leituras obrigatórias, a menos que haja uma razão poderosamente literária para isso. Em geral, o que acontece é que essas leituras são escolhidas mais por interesses comerciais ou dos adultos do que por interesse literário para a infância. Apesar da minha avidez leitora quando criança, odiava essa imposição para ler determinado livro. Prefiro oferecer às crianças uma lista ampla de leituras onde possam escolher e, em outras vezes, deixar que frequentem a biblioteca e que elejam suas leituras sozinhos. Na minha casa, por exemplo, tinha um pacto com meus filhos: nos alternávamos na escolha do livro que íamos ler em voz alta. Uma vez lidos três capítulos, qualquer um podia exercer o direito a veto se algum dos membros da família não estivesse gostando da leitura escolhida. Também seria interessante fazê-los partícipes nas escolhas do acervo da biblioteca: se aprendem a avaliar os critérios de seleção, escolherão melhor que os adultos, de acordo com seus interesses. Sou favorável de deixar as crianças vetarem aqueles livros da biblioteca que lhes parecem leituras ruins, desde que saibam argumentar nesse sentido. BB: Quais são os principais critérios para se escolher livros literários para crianças? Lara: Qualidade literária do texto, qualidade artística das imagens, diálogos enriquecedores entre texto e imagem, veracidade e rigor no caso dos livros informativos, verossimilhança e credibilidade em ficção, que não haja intenção moralizadora nem educativa, fugir de histórias e personagens estereotipadas... E confirmar nossas escolhas diretamente com as crianças. BB: Por que é importante ter critérios, fazer esse trabalho de curadoria? Lara: As bibliotecas (públicas, escolares e familiares) têm capacidade limitada de espaço, pressuposto para a compra de livros. Isso nos obriga a realizar uma seleção entre os livros que se publicam e eleger qual se tornará parte de nosso acervo. Nossos objetivos devem ser atender as diversas necessidades dos possíveis leitores, oferecer a maior variedade possível de obras de qualidade para todos os gostos. Para tanto, precisamos nos perguntar quais são nossos critérios, tanto os conscientes quanto os inconscientes. BB: Como é seu processo de curadoria em sua loja de livros infantis? Pode compartilhar um pouco dessa experiência conosco? Lara: Na livraria [El Bosque de la Maga Colibrí], nos acontece o mesmo: não podemos ter todos os livros. Na Espanha, no geral, o que domina o mercado são as novidades. No entanto, na Bosque, desde o começo decidi que era mais importante para mim ter uma livraria com um acervo estável de livros que se consideram imprescindíveis - ainda que não sejam os mais vendidos. Quando recebemos livros novos, como trabalhamos habitualmente com crianças em escolas e bibliotecas, podemos "colocá-los à prova" diretamente com elas. Se funcionam, incorporamos ao nosso acervo permanente. Claro que, então, há o trabalho de formação dos adultos que compram, que têm de confiar em nosso critério, mesmo que aqueles livros não sejam os que comprariam aos pequenos (porque as ilustrações são ousadas, porque têm pouco texto, porque lhes parece pouco infantil...). Quando levam um livro para casa, para a escola e/ou biblioteca e comprovam que interessa às crianças e as motiva a ler, se tornam clientes fiéis."É importante buscar também, no entanto, a maior diversidade possível, para que cada criança possa encontrar esse livro em que reconhecer-se, em que construir-se"
BB: Pode compartilhar conosco um pouco do processo criativo de Maya & Selou? Em que se inspirou? Em que infância se inspirou? Lara: O início do livro teve muito de brincadeira. Uma ideia que rondava minha cabeça em busca de uma estrutura em que pudesse funcionar. Quando encontrei o formato, fiz um pequeno roteiro, sem saber muito bem o que queria contar exatamente. Pensava na diversidade da infância: como duas crianças da mesma idade podem ser tão diferentes, tanto por seu desenvolvimento quanto pela personalidade, ainda que aparentemente estejam brincando da mesma coisa, fazendo as mesmas coisas. É a magia do jogo simbólico, em que a ação pode ser a mesma, o brincar pode ser o mesmo, mas o pensamento é muito diverso. De certo modo, acredito que queria - talvez não tão conscientemente - revelar aos adultos o mundo interior tão rico e complexo das crianças, muito além de sua autonomia, de sua etapa de desenvolvimento, do que nos mostram com suas ações. Queria revelar o quão difícil se torna apreciar as crianças pelo pouco que escutamos, pelo pouco tempo que nos dedicamos a elas. Trabalhar com a ilustradora María Pascual [de la Torre, que assina o livro com Lara] foi maravilhoso: logo se somou ao projeto e passamos três anos intensos de criação conjunta, de conversações intermináveis sobre personagens, representação da infância, ritmo, brincadeira... até que conseguimos terminar o livro. BB: Que livros, filmes, artes, artistas, experiências te inspiram e como essas inspirações estão presentes na sua curadoria, na sua relação com a literatura infantil, nos seus livros? Lara: Creio que todas as leituras que fazemos, as experiências culturais que vivemos são bagagens das quais não podemos nos separar. Vão se somando e tecendo-se com nossas experiências vitais; nos formam como pessoas e também como profissionais. Às vezes, nem somos conscientes de nossas referências. Há autores e atristas que admiro muito, mas também pessoas que conheço me servem de inspiração. Paisagens, odores, sabores... é um conjunto.Este texto foi publicado originalmente no Blog da Brinque e estava hospedado no site da Brinque-Book. A editora Brinque-Book foi integrada ao Grupo Companhia das Letras em outubro de 2020 e a migração deste conteúdo para dentro do Blog da Letrinhas tem como objetivo somar conhecimentos, unificar os blogs e fortalecer a produção de conteúdo sobre literatura infantil, leitura e formação de leitores.