Adriana Friedmann: para ouvir as crianças, é preciso resgatar nossa sensibilidade
20 de Junho de 2018 às 13:38
Originalmente publicado no Blog da Brinque
A criança está permanentemente manifestando-se através do seu inconsciente com suas fantasias, seus sonhos, seus desenhos
BB: Resgatar a criança que fomos - e somos - é uma caminho para esse diálogo? Como se faz isso? Friedmann: Trata-se sim de resgatar esta criança dentro de cada adulto. Há muitos caminhos para tal, começando por uma reconexão com as memórias, preferências, frustrações e reconhecimento daqueles sonhos ou potenciais caminhos expressivos que, para a maior parte dos adultos, acabam ficando 'esquecidas'. Como? Pode ser através de trocas com diferentes grupos, trabalhos com corpo, arte, música, terapias das mais variadas. Mas geralmente a própria vida manifesta, de alguma forma, esta necessidade em cada um. Estar atento às nossas intuições é fundamental para esta 'escuta' interior. BB: Na escola, como é possível treinar ainda mais essa escuta? Friedmann: Para trabalhar a escuta das crianças nas escolas, sugiro sempre como o primeiro espaço-laboratório para se conectar com elas, os tempos dos recreios ou tempos livres, nos quais as crianças têm autonomia para escolher com quem, do quê e com o quê querem brincar, ou o que querem fazer. Mas há muitas brechas mesmo nas salas de aula. A questão desafiadora é para o professor: para ele se abrir para esta necessária escuta - que vai trazer a ele conhecimento sobre a realidade e momento de cada criança - ele precisa, de forma paralela, se abrir para tal. E penso que só com formação e orientação isto será possível.Mas para a criança realmente viver o brincar como canal expressivo precisa ser deixada livre.
BB: É comum ouvir que o brincar é a linguagem da infância. Que isso significa? Friedmann: O brincar é uma das linguagens por excelência da infância. Não a única. Isto significa que, através do brincar - que já é livre por natureza, já que é também um fenômeno - as crianças não somente descobrem e aprendem do mundo e dos outros, mas se manifestam e comunicam - pelas suas escolhas, atitudes, falas, formas de brincar - seus medos, suas vontades, suas fantasias, suas realidades, suas emoções, dentre tantas outros aspectos. BB: Por que brincar é uma forma de acessar e expressar conteúdos simbólicos e inconscientes? Friedmann: Sobretudo nos sete primeiros anos de vida, a criança, imitando primeiro, criando depois, resignifica a vida através do seu brincar, do faz de conta, da sua auto fala (quando fala para si mesma), do jeito como ela organiza seus cenários de brincar, dos apegos que manifesta com adultos, com seus pares, com objetos ou brinquedos. A criança está permanentemente manifestando-se através do seu inconsciente com suas fantasias, seus sonhos, seus desenhos, etc. Ela não só acessa esses conteúdos mas eles fazem parte da sua vida, como da vida de todos nós adultos. A diferença é que ao querermos explicar esses conteúdos pelo racional, muitas vezes carecemos de 'ferramentas' para tal. BB: O brincar tem sido bastante instrumentalizado na escola como forma de se "aprender" conteúdos. Isso não atrapalha o brincar como forma de expressão? Friedmann: O brincar já entrava nas escolas, desde a época dos Jesuitas, como um instrumento pedagógico. Nesse sentido o brincar perdeu o que está no seu cerne: a espontaneidade. É por isso que é fundamental compreender as razões pelas que o brincar livre, não direcionado, precisa resgatar seu espaço na escola. O brincar dirigido e o pedagógico são interessantes também, tanto para transmitir tradições e culturas (o primeiro) quanto para motivar a criança no seu processo de aprendizagem (o segundo). Mas para a criança realmente viver o brincar como canal expressivo precisa ser deixada livre. O equilíbrio entre estas formas de brincar é fundamental na escola. BB: Do que uma criança precisa para brincar? Friedmann: Diria que, essencialmente, precisa de tempo, espaço, às vezes algum estímulo, outras vezes companhia, respeito se sua escolha for brincar sozinha. Brinquedos, objetos, etc. podem ser interessantes mas criança transforma qualquer material que estiver ao seu alcance em brinquedo ou pretexto para brincar.Este texto foi publicado originalmente no Blog da Brinque e estava hospedado no site da Brinque-Book. A editora Brinque-Book foi integrada ao Grupo Companhia das Letras em outubro de 2020 e a migração deste conteúdo para dentro do Blog da Letrinhas tem como objetivo somar conhecimentos, unificar os blogs e fortalecer a produção de conteúdo sobre literatura infantil, leitura e formação de leitores.