They, menines, alunx: dentro das palavras, crianças podem só ser crianças?

Por Renata Penzani

Se você estranhou o título deste texto, tem razão. Se comemorou, pode ter razão também. Afinal, ele contém três palavras que, para muita gente, nem existem no dicionário. Porém, para outras muitas pessoas, essas mesmas três palavras não só existem como permitem que elas próprias (as pessoas) existam também. 

Ilustração do livro Menino, menina (Pequena Zahar), da autora portuguesa Joana Estrela 

A palavra "they" – como alguns de nós já sabemos – é a terceira pessoa do plural na língua inglesa. Se traduzida para o português, se transforma em "eles", uma vez que no Brasil usamos o chamado "masculino genérico" como parâmetro. Mas não é assim em todo lugar. Sabia que alguns idiomas já incorporaram formas neutras em suas acepções e outros aboliram o masculino genérico para designar profissões, por exemplo? É o caso do Duden, dicionário da Alemanha. Desde 2015, a academia sueca também utiliza o gênero neutro em seu dicionário oficial. Em inglês, o britânico Oxford Dictionary reconhece o pronome “they” – vale grifar: no singular –, como a forma oficial de se referir a pessoas que se identificam como não binárias. Em 2019, por conta disso, a palavra “they” foi escolhida como o verbete do ano do Oxford Dictionary.

Qualquer um que alguma vez tenha se incomodado com a generalização totalizante e ao mesmo tempo excludente de uma língua que para alguns é mera formalidade linguística e para outros é impeditivo de existência já sentiu a falta que faz um outro jeito de se comunicar. Pois ele existe, só não é aceito com tanta facilidade, e nem por todo mundo. 

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Linguagem neutra e as crianças

Se você leu até aqui, deve estar se perguntando o que todo esse imbróglio tem a ver com o assunto deste Blog, a literatura para crianças. E a resposta mais completa e justa é uma só: tudo. Absolutamente tudo. 

A premiada autora portuguesa Joana Estrela, do livro Menino, menina (Pequena Zahar), enaltece a liberdade de ser criança

Enquanto crescem e se desenvolvem, as crianças vão tomando contato com as palavras que ouvem, leem, interpretam. Os livros podem ser nossas primeiras portas de entrada para essa linguagem, que não é neutra por natureza, uma vez que ela faz parte de um contexto social que a transforma conforme o uso e as necessidades de comunicação. Daí as gírias, os vícios de linguagem, os bordões e até mesmo os memes, que torcem e retorcem o significado das palavras.

A língua não é estanque, mas sim um organismo vivo em constante mutação. São as pessoas que garantem essa pluralidade. Graças às pessoas e a seus diversos contextos e repertórios culturais, uma mesma palavra pode invocar união ou se transformar em um campo de guerra, por exemplo.

Então, dito tudo isso, apesar de denominar-se "linguagem neutra" a tentativa de driblar essa realidade, pensar em neutralidade da língua é mais demonstrar o desejo de que ela pudesse de fato não validar apenas o masculino ou o feminino como únicas formas possíveis de dizer. Quando dizemos "menino" ou "menina", narramos junto com a palavra todo o seu aparato social, histórico e político. E não é divertido pensar que em outros idiomas essa dicotomia entre um e outro pode nem existir, simplesmente porque as palavras são outras? 

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Criança ou criança?

O fato (se é que pode existir só um) é que, em qualquer língua, a depender de como se escolhe dizer determinada coisa, a mensagem fica diferente. Em seu livro mais recente, Menino, menina (Pequena Zahar), a premiada escritora portuguesa Joana Estrela brinca justamente com isso. Com a maleabilidade da língua, e como as crianças têm muito mais facilidade de fluir com as palavras, sem se prender aos seus significados.

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Em duplas de páginas ilustradas e bem-humoradas, Joana traz situações em que as meninas e os meninos podem ser vistos como iguais ou diferentes. No texto e nas imagens, de formas diversas, o leitor é convidado a voltar sempre ao mesmo lugar: importa mais saber se a criança está feliz, saudável e cercada de afeto e de segurança do que o pronome pelo qual ela responde. 

Com delicadeza e a simplicidade que só os adultos sensíveis e as crianças alcançam, a história de Menino, menina consegue apontar como é saudável que seja assim. "Azul ou rosa?”, pergunta o livro (e aqui, provavelmente, o leitor poderá invocar suas referências do que essas cores significam no imaginário popular). Porém, outras palavras não carregam a mesma carga, pelo contrário: "Traquina ou traquina?", questiona em outra página. Ué, então ambos são iguais, estão brincando e sendo crianças do mesmo jeito? Já parou para pensar em como algumas palavras podem inspirar mais medo ou repulsa que outras? Por que será? Onde aprendemos assim? E a quem serve continuarmos nos assustando com elas?

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A quem serve a linguagem?

A linguagem, dentro ou fora das histórias, pode excluir ou incluir, acolher ou repelir, assustar ou acalmar. Quando cuidamos dela, cuidamos do que é ser humano por definição, já que somos animais gregários e relacionais, que aprendemos uns com os outros. Afinal, qualquer palavra ensina. Mesmo as mais violentas. A questão é: o que elas ensinam? E como? A língua não existe dissociada do contexto em que ela é usada.

É o que afirma Rodrigo Borba, pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), nesta entrevista para a Revista Gama (recomendo com força essa leitura). "Parto da posição de considerar a língua uma parte de sociedade em que ela está. Se vivemos em uma sociedade patriarcal, a língua reflete isso."

Ilustração de Joana Estrela para seu livro Menino, menina (Pequena Zahar)

Assim, voltando às três palavras do título deste texto. E pensando nelas à luz do livro da Joana Estrela. Elas podem falar de existir com mais ou menos cuidado pelo poder social das palavras que escolhemos (ou que escolhem por nós). Podem dar ou suprimir liberdades, proteger ou prejudicar. Elas podem falar de crianças mais ou menos confortáveis no mundo. De infâncias que existem e infâncias que não existem. Como em todo discurso, vai depender não só de quem diz, mas do interlocutor.

As palavras – assim como a proteção à criança – vivem em um campo de disputa. Quem vai tirá-las de lá, se não as novas histórias que escrevemos, desenhamos, lemos, sentimos? Todos os dias. Sozinhos e acompanhados. Com e para as crianças. Lemos para inventar outras vidas, e as histórias recomeçam o mundo porque recomeçam as palavras. E é aí que elas podem ganhar outras vidas além de seu “estado de dicionário”, como diria Manoel de Barros – que, não poderia deixar de ser, era poeta e prezava mais passarinhos que aviões.

Renata Penzani é jornalista, pesquisadora do livro para a infância e autora do blog Garimpo Miúdo, espaço em que compartilha achados da literatura infantil e juvenil.

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