Teresa é Natal

 

Por Marcelo Romagnoli

 

Teresa tem seis anos e diz que já entendeu o mundo.

 

Não duvide.

Em meia dúzia de natais ela já foi menino, bicho, pedra, coisa e planta.

É que Teresa descobriu que de longe não há verdade.

Só de dentro.

“Logo, pra entender só se for”, filosofa. 

 

 

Sua tática de conhecimento é muito simples.

1. Escolhe o que ser.

2. Demora olhando.

3. Ataca sendo.

 

Por exemplo, no caso da planta.

Teresa ficou o dia todo no jardim, parada, pés enterrados, pensando e vivendo como xaxim.

Não reagiu nem quando Ovídio, o cachorro do primo Gilmar, fez xixi no seu tornozelo.

Entendeu muita coisa.

E passou a dar bom dia para a samambaia, porque descobriu que solidão não escolhe reino.

E quando alguém sugeriu cortar o galho do pinheiro pra enfeitar o Natal, foi categoricamente contra.

Agora ela sabe muito bem o que é ser atacada e não poder se defender.

Pois pense.

Como um mato qualquer pode escapar quando alguém aparece com um serrote?

Fazer árvore de Natal só se ela puder continuar vivendo depois da festa.

Senão vira sacrifício e isso não é justo.

A mesma lógica serve para o peru, que deve pensar: “Vocês, humanos, nunca foram peru, estão perdoados, não sabem o que fazem”.

O bicho que Teresa um dia foi servia pra outra coisa.

Sua função era outra.

Não sei qual, mas outra. 

“Função de bicho é ser bicho”, murmurou ela e encerrou o assunto.

 

Sendo assim e porque é final de ano, Teresa resolveu ser o Natal.

Parece fácil, mas Natal não é gente, bicho, pedra, planta nem coisa alguma que se possa ver, medir, pegar.

Não é.

Natal é lembrança, sensação, ideia, festa.

É um espírito. 

 

“Carambola!”, parou pasma.

Ser planta é moleza perto de ser espírito.

Porque espírito é, mas não é.

E pra virar algo que não é, a ciência de Teresa vai ter que evoluir.

Pois pense.

Espírito está no ar, dá pra sentir.

Só que não é.

E mesmo o ar, que temos certeza que é, não se vê.

Como então ser o Natal, que não é o que se espera que uma coisa seja?

Como?

E sabe, ela conseguiu.

 

 

Começou analisando o fato de o ar ser parecido com o espírito.

Espírito é como o ar, só que recheado de mais informação.

E fez uma pergunta.

“O que é que a gente sente quando o ar se movimenta?”

 

Se for vento polar, sente frio.

Se for brisa tropical, bossa nova.

Mas e se no ar estiver escondido, entre as ondas, um espírito que voa?

Dá arrepio.

 

Menos nela.

Pessoas mais avançadas, como Teresa, sentem as ondas.

Não as do mar, mas as de energia.

Esse é um magnetismo que Teresa conhece bem porque estudou em sonhos o átomo.

O átomo é quase o nada.

Vive cheio de um vazio muito minúsculo.

Pulsa com insignificante grandeza.

O átomo está em tudo que forma o mundo.

“É como se fossem os grãos da areia que sem eles adeus praia”, explicou-se.

 

Então planejou sua experiência, contou até três e pimba.

Fechou os olhos.

Respirou fundo e se imaginou como inúmeras partículas de Natal suspensas.

Aproveitou e saiu voando pela casa.

Sentiu certa felicidade.

Sentiu uma espécie de alegria parecida com aquela quando se recebe alguém novo e cheiroso em casa.

Um bebê, um presente.

Teresa era uma sensação amorosa.

Viu muito futuro.

Às vezes, precisou desviar de raios brilhantes, que giravam perto dela.

Era tudo verdade, pois dava pra sentir na pele o calor da imaginação.

 

De repente, alguém chamou e ela abriu os olhos.

Percebeu que tudo pode sumir se a atenção não for grande.

 

Ou seja, pra resumir no tanto que sei explicar:

Teresa mudou os átomos do seu pensamento e pensou com os átomos do Natal.

E vice-versa e pronto.

 

Parece milagre, escuto daqui.

E é.

Pois pense.

Imaginar ser é possível, é real, é útil.

Depois, mais tarde, a menina já previu o próximo passo:

Fazer do ano inteiro um dia de Natal.

 

Teresa tem o tempo de seis anos e espaço no coração para todos os mistérios.

***

Marcelo Romagnoli é dramaturgo e diretor teatral do grupo bandaMirim. Com diversos espetáculos premiados, é autor de Os mundos de Teresa e Terremota, ambos publicados pela Companhia das Letrinhas.

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