Será mesmo que os jovens estão lendo menos?
Dados recentes revelam o que pais e professores já percebiam: os jovens estão lendo menos - ou, pelo menos, lendo textos mais curtos. Uma pesquisa realizada pelo Iede (Interdisciplinaridade e Evidência no Debate Educacional) em parceria com a plataforma gamificada de leitura, Árvore, constatou que o maior texto lido por 66% dos jovens brasileiros entre 15 e 16 anos não passou de 10 páginas.
O estudo teve como ponto de partida os microdados do Pisa 2018, o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, que é um dos principais indicadores sobre o desempenho escolar em nível internacional. A pesquisa correlacionou essas informações sobre leitura a um desempenho mais baixo em matemática e ciências. A correlação faz sentido, uma vez que livros mais longos proporcionam mais oportunidades de aprofundar temas e trabalhar conteúdos multidisciplinares.
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No entanto, a professora Maria Zélia Versiani Machado, do Ceale, o Centro de Alfabetização Leitura e Escrita da UFMG, a Universidade Federal de Minas Gerais, não acredita que crianças e jovens estejam, de fato, lendo menos. “Arrisco a dizer até que estão lendo muito mais com o acesso à internet. Talvez haja uma correlação entre a disposição a leituras mais extensas e o padrão de tamanho de texto oferecido nas redes sociais. Pesquisas hoje mostram que há um limite para essa disposição quando se lê na tela. Textos mais extensos, pejorativamente chamados de “textão”, geralmente são abandonados pelos leitores, e aqui incluo os adultos”, comenta. Ou seja: para ela, embora o volume de leitura, hoje, possa ser maior, estamos falando de textos mais curtos e fragmentados, condizentes com a rapidez e o volume de informações a que somos todos expostos - especialmente na internet.
Para Maria Zélia, a questão da leitura deve ser observada de uma perspectiva mais complexa: não se trata apenas de quanto os jovens leem, mas do quê leem. “É sempre bom lembrar que ler é um verbo transitivo, como ensinou a professora Magda Soares. Daí a necessidade de, quando sob o foco de uma análise, sempre ampliar a questão para “o que leem os jovens?”
A professora cita a pesquisadora e alfabetizadora Magda Soares, que faleceu no começo de 2022 e era uma das grandes referências brasileiras nas pesquisas sobre letramento. Um de seus textos reflete sobre essa questão do volume de leitura atual:
“Talvez há 30, 50 anos se lesse mais e melhor livros, revistas, jornais… Atualmente, esses portadores de texto em papel enfrentam a concorrência de portadores de texto em telas (TVs, computadores, celulares, jogos digitais), que também pedem leitura. Se considerarmos a multiplicação, nas últimas décadas, de textos, portanto, de propostas de leitura, em numerosos contextos sociais, sob diferentes formas e suportes, talvez se possa dizer que hoje se lê mais. Resta discutir se podemos lamentar que essas novas propostas de leitura estejam afastando as pessoas da leitura no papel. O uso do verbo ‘lamentar’ revela um juízo de valor que eu faço, e muitos também fazem”.
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A internet não é a única culpada: veja outros fatores que fazem os jovens lerem menos
Um dos dados apontados pela pesquisa é que apenas 9,5% dos estudantes brasileiros de 15 e 16 anos já leram algum material com mais de 100 páginas em 2018. Esse número nos coloca bem atrás de outros países latinoamericanos, como Argentina (25,4%), Chile (64%) e Colômbia (25,8%). É preciso levar em conta que textos mais longos exigem do leitor mais tempo de foco e concentração, na contramão dos textos condensados de posts e tweets das redes sociais.
Mas há outras causas, além da internet, que podem contribuir com a falta do hábito de leitura de textos mais robustos. Entre elas estão a escassez de bibliotecas, o baixo estímulo à leitura - tanto em casa quanto na escola -, e as próprias deficiências de aprendizagem. Mesmo antes da pandemia de Covid-19, que intensificou as defasagens, os números já não eram bons. Dados do Saaeb de 2019 revelaram que somente 34% dos alunos do 3º ano do Ensino Médio tinham um nível adequado em Língua Portuguesa.
“Concordo que o escasso número de espaços de leitura como bibliotecas públicas deixa muito a desejar. Sobretudo quando tratamos de espaços voltados para crianças e jovens, que deveriam ser atraentes para eles, não só em termos de acervos como de atividades que envolvam a leitura na infância e na juventude. Projetos de bibliotecas públicas que contemplem também as periferias das cidades, considerando que, principalmente crianças, não podem se deslocar sozinhas para usufruírem desses espaços”, comenta a professora Maria Zélia.
Quanto ao estímulo recebido na escola, para a professora é preciso considerar não apenas a oferta e variedade de livros, mas a criação de espaços e de tempo para a experiência de leitura, para que se possa fruir de textos de diferentes tipos: literários, paradidáticos, informativos. Talvez, hoje, as práticas de leitura de fragmentos ou de textos didáticos talvez se encaixem melhor no tempo das aulas.
Além disso, é preciso olhar para o comportamento leitor e para o próprio processo de letramento como algo contínuo, que se inicia na Educação Infantil e se aprimora durante toda a Educação Básica. “Nos anos iniciais do Ensino Fundamental, as crianças podem já ter experiências com textos mais longos, como, por exemplo, na leitura das narrativas dos clássicos contos de fadas ou de bons livros informativos - estes últimos ainda pouco presentes no espaço escolar. Quando consolidam a alfabetização e se tornam mais autônomos como leitores, seria oportuno disponibilizar acervos que oferecessem também livros com maior número de páginas e não apenas livros ilustrados ou livros com muitas ilustrações”, explica a professora.
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Como fazer com que crianças e jovens leiam textos mais longos - e tomem gosto pela leitura?
A grande pergunta que pais e professores devem fazer é: de que forma podemos incluir textos mais longos e complexos tanto nas leituras realizadas na escola quanto em outros contextos sociais?
Primeiro, precisamos lembrar que a leitura exige uma certa disposição e que é, por natureza, uma atividade solitária. “O leitor interage com o texto, sobretudo no caso de textos mais longos, sem levar junto o professor, os pais, os amigos. Ele segue sozinho, no máximo com alguns incentivos prévios que passam pela contextualização do que será lido. É ele e o texto que existem no ato de ler. O engajamento subjetivo na leitura será essencial para que ela prossiga com algum êxito”, explica a professora Maria Zélia. Para ela essa disposição é a chave para que o engajamento na leitura aconteça e o leitor tenha a concentração necessária para avançar no texto.
Apesar de ser uma atividade solitária, a leitura ganha força quando consegue unir leitores com aspirações em comum - e nesse ponto, as comunidades de leitores podem ser um fator de peso no estímulo à leitura. Quem não se lembra do fenômeno Harry Potter nos anos 2000? “ A escola precisa ficar atenta a essas dinâmicas para poder se apropriar delas conquistando os leitores. Essa conquista passa pela socialização das experiências individuais, em discussões, rodas, círculos de leitura ou outras atividades que propiciem as interpretações coletivas e compartilhadas, no decorrer da leitura”, comenta Maria Zélia.
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A internet também pode ser uma ferramenta poderosa na criação dessas comunidades leitoras. Na plataforma Tiktok, a hashtag #booktok ganhou força em 2021, impulsionando as vendas de livros infantojuvenis em 42% naquele ano. Na plataforma, os #booktokers, na maioria jovens, compartilham suas impressões sobre livros e dividem recomendações em diversos formatos: listas, resumos e até criando personagens.
Ou seja: além ampliar o acesso a bibliotecas com oferta de livros variados, de criar tempo e espaço para leitura e discussão das obras nas escolas, talvez seja interessante pensar em como o livro pode criar comunidades. E, com sorte, ajudar a ampliar o interesse e o apetite para o consumo de obras mais extensas. “O que se espera é que, quando os estudantes chegarem aos anos finais do Ensino Fundamental e ao Ensino Médio, já tenham desenvolvido habilidades e disposições para livros de mais de 100 páginas, e não usem como critério de escolha “livros fininhos”, resume a professora.
Nada contra livros fininhos. Mas para aprofundar os desafios aos leitores, exigindo uma dose extra de fôlego e concentração, o tamanho importa, sim - e cada página conta.