Renato Gama: ‘Letramento racial na infância significa cuidar do futuro’
A protagonista de Neguinha, sim! (Companhia das Letrinhas), lançamento do escritor e multiartista paulistano Renato Gama , é uma menina que vê em seu cabelo blackpower uma herança ancestral, trançada por beleza e resistência. “O meu cabelo é pixaim, meu black power fica assim, e quer saber? Eu sou muito, muito feliz. Ele brilha com o sol, o meu cabelo faz um caracol e ele é bonito em Paris, Dacar, São Luís e Maceió”, diz o livro de estreia de Renato, que é compositor, musicoterapeuta, cantor, diretor de teatro e produtor musical.
Ilustração de Bárbara Quintino no livro Neguinha, sim!
A obra surgiu como um canto compartilhado com as crianças que, segundo o seu autor, permite ler a beleza do cabelo crespo. Os versos do livro nasceram como música, reforçando a potência da arte para ultrapassar fronteiras entre gêneros e também para ampliar repertórios afirmativos e recriar narrativas de mundo.
A canção Neguinha, sim!, de Renato Gama, especialmente conhecida na voz de Izzy Gordon, ganha traços e cores de Bárbara Quintino e exalta as identidades de todas as crianças negras. Renato dedica sua “história-canção”, como diz a sinopse do livro, às mulheres que o criaram. A avó Antonia, a mãe Vera e a madrinha Elenice. Além disso, convida os leitores a celebrarem com ele a memória de suas matriarcas que já partiram: a tia-avó Adelina, a tia Ana e a avó Sebastiana. “Para eu escrever essa canção que virou livro, muita coisa foi escrita antes”, conta ele.
Ao alcançar o público infantil, agora por meio da literatura, Renato Gama expande sua própria atuação ativista. Além de artista, ele também é conhecido por sua luta pautada na antirracismo e no direito à cultura, estando à frente de projetos como o Coletivo Sá Menina e o Centro Cultural Viela em Dia de Lua, na Vila Nhocuné, zona leste de São Paulo. Ambos funcionam na periferia da capital paulista e são focados na promoção de ações e produções que se preocupam em democratizar o acesso à arte em regiões de vulnerabilidade social. “O livro se torna mais uma ferramenta de cura, de olhar para o passado, limpar e potencializar o futuro”, compartilha o autor.
Renato atua também em outras produções culturais, como filmes e espetáculos, e assinou, ao lado do irmão, Ronaldo Gama, a trilha sonora do documentário Racionais - Das ruas de São Paulo pro mundo (2022), dirigido por Julianna Vicente, com produção Preta Portê Filmes, e disponível na Netflix.
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Uma ode musical-literária à afirmação das identidades
Neguinha, sim! foi lançado em agosto, em um espetáculo em homenagem a um dos artistas mais relevantes da música brasileira: o cantor e compositor Itamar Assumpção, que também entoava suas ancestralidades sem deixar de promover um levante contra o racismo estrutural. A cantora Alzira E. conduziu o lançamento ao lado de Renato Gama, como parte do mais recente show musical do escritor, o "AfrôGira: a gira dos quintais das pequenas Áfricas". O espetáculo elebra a ocupação africana nos territórios brasileiros a partir de ritmos como samba de roda e ijexá. “Ainda estou decodificando tudo que aconteceu. Vou trazer uma frase da minha mãe no dia seguinte: “Filho, vivi um dos momentos mais felizes da minha vida!”, contou Renato ao Blog da Letrinhas, no dia seguinte do evento, realizado no Sesc Jundaí.
Hoje, o desejo de todos os envolvidos em sua composição, edição e publicação é que ela possa, cada vez mais, ser identificada como um material de fortalecimento de identidades negras, uma caixa de ressonância das afroinfâncias orgulhosas de si.
Em 2020, durante o período de isolamento provocado pela pandemia de Covid-19, o Projeto Observatório de Direitos Humanos em Escolas (PODHE), do Núcleo de Estudos da Violência da USP (Universidade de São Paulo), criou um repositório de conteúdos sobre autocuidado e direitos humanos. Podcasts, poemas, filmes, cursos online, músicas, brincadeiras e outros materiais foram reunidos com o objetivo de fortalecer o senso de comunidade mesmo com a distância obrigatória, e assim contribuir com a saúde mental da população. Neguinha, sim! faz parte deste material.
Tanto em sua forma musical quanto em sua versão como literatura ilustrada, Neguinha, sim pode ser lida, ouvida, experenciada como um hino contemporâneo às negritudes afrobrasileiras. No final da história, o livro traz a partitura e a cifra da canção para que os leitores possam cantar junto - o difícil é ler o texto sem, naturalmente, cantarolar.
Confira a entrevista na íntegra com o escritor Renato Gama
Blog da Letrinhas: Como surgiu a ideia de transformar a música neste livro-poema ilustrado?
Renato Gama: Compus essa canção em 2017, várias pessoas a interpretaram, até chegar na Izzy Gordon. Quando um amigo que trabalha com edição de livro ouviu, propôs essa ideia, dizendo que seria incrível ver crianças lendo a beleza dos cabelos crespos.
Qual a importância de as crianças brancas se racializarem a partir de narrativas como esta?
É uma estratégia para acabar com o racismo e a discriminação. Como o combate a esse crime tem questões profundas, principalmente no Brasil, acredito que o letramento racial (afro/indígena) na infância é cuidar do futuro.
Você conta, no final da publicação, que este livro simboliza um gesto ativo do verbo “esperançar”. Pode contar para nossos leitores de onde ele vem, o que ele representa na sua trajetória como artista e ativista, e qual a importância dele nos dias de hoje?
O Brasil vem sendo “medalha de ouro” em racismo, em violência contra pessoas trans e outras agruras. Tenho comigo que acreditar na revolução a partir do amor é algo potente e transformador, é o que nos leva para uma vida mais digna. Chegar aos 48 anos, tendo nascido na periferia, sendo negro, habitando as classes mais baixas da sociedade, e estar vivo… isso é ter esperança. Como verbo, é agir, esperançar.
Você tem um trabalho multidisciplinar pautado na luta contra o racismo. De que forma este livro se relaciona com sua vivência em outras frentes de atuação, na produtora Sá Menina e no Centro Cultural Viela em Dia de Lua?
O livro se torna mais uma ferramenta de cura, de olhar para o passado, limpar e potencializar o futuro, sabendo que as construções são dadas no presente. O futuro é ancestral.
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Você dedica o livro às mulheres que o criaram, como é sua relação pessoal/afetiva com a ancestralidade? E qual a importância particularmente das mulheres na sua vida e formação?
Fico observando os bonobos, macacos matriarcais que nos ensinam muito. Dessa forma patriarcal que vivemos, vimos que deu ruim, temos que elaborar novas formas de se relacionar. Pensar assim foi minha inspiração nessas mulheres.
Além de me criarem, as mulheres me possibilitaram acreditar nas comunidades para edificar nossas relações sociais. (Renato Gama, escritor)
Uma passagem marcante do livro é quando o texto diz: “Quando gritam desatam todos os nós”. Quais são os “nós” a que esse verso se refere, e como desatá-los com a ajuda das crianças?
É o nó edificado pelo ódio. As pessoas estão sentindo prazer em odiar. As crianças possibilitam olharmos para o afeto a partir do amor. Volto a dizer: esperançar.
Com as crianças, estão os códigos do bem viver, da amizade e da compreensão. (Renato Gama, escritor)
Na sua experiência como ativista, o reconhecimento das lutas que vieram antes da nossa é algo presente na educação das crianças de hoje? Qual a importância das ancestralidades na infância?
O futuro é ancestral. Reverenciar quem veio antes é trabalhar nossa humildade, nos reconhecer parte de algo, completar algo, nos enxergar. Emancipar a consciência é o caminho para a liberdade.
Como tem sido a recepção dos leitores e dos fãs de vocês ao conhecerem essa canção que virou livro? No lançamento-show, o que te marcou nesse contato direto com o público? Como as crianças têm aparecido nesse processo?
O que vem me marcando muito são os sorrisos das crianças, os abraços. E foi uns dos livros mais vendidos da Companhia das Letras na Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Celebrar!!!!!!
Outro ponto de contato do livro é com as religiões de matriz africana. Pode contar como foi a gira em homenagem ao Itamar Assumpção, que aconteceu durante o lançamento?
Ainda estou decodificando tudo que aconteceu. Vou trazer uma frase da minha mãe no dia seguinte:
- Filho, vivi um dos momentos mais felizes da minha vida!
Como foi que as mulheres homenageadas no livro – Antonia, Adelina, Vera, Ana, Elenice e Sebastiana – o receberam? Na sua opinião, o que poderia ter sido diferente se elas tivessem conhecido essa história na infância?
Acredito que as coisas acontecem no tempo que têm que acontecer, a partir das nossas semeaduras. Para eu escrever essa canção que virou livro, muita coisa foi escrita antes. E essas mulheres – posso dizer também de Beatriz Nascimento, Carolina Maria de Jesus, Miriam Alves, Neide Almeida, Sueli Carneiro – desataram os nós para que tudo isso caminhe com a força que tem que caminhar.
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(Texto: Renata Penzani)