Protagonismo infantil: a voz e a vez das crianças

Protagonismo infantil é uma forma de colocar as crianças no centro de seus próprios processos. De entender que elas são capazes de construir conhecimento, no lugar de apenas absorverem o que os adultos ensinam. Que não são folhas em branco, mas pessoas, com seus próprios gostos e personalidades, operando em um ritmo bem diferente dos adultos - e que precisa ser respeitado. É uma mudança no valor que se atribui às crianças - em uma sociedade adultocêntrica - e no espaço que se dá para que elas possam ser elas mesmas. E isso muda profundamente as dinâmicas dentro das famílias. Na literatura, há muitas inspirações de personagens que exercem esse protagonismo infantil, expressando livremente seus sentimentos e opiniões, imaginando seus próprios mundos fantásticos e construindo sua própria jornada. 

Iustração de Maurice Sensak em Onde vivem os monstros

Ilustração do clássico Onde vivem os monstros, de Maurice Sendak

Um dos mais emblemáticos é Max, o ilustre personagem de Onde vivem os monstros, clássico que consagrou Maurice Sendak e que foi republicado em 2023 pela Companhia das Letrinhas. Quando a mãe de Max fica furiosa e manda o menino para a cama sem jantar, depois de toda a bagunça que ele fez em casa, ele nem teve tempo de ficar tão chateado. “Na noite de seu próprio quarto”, Max criou uma floresta, um barco, e foi parar em um mundo inteiro de monstros, que o fizeram rei de todos eles. Depois de aprender a domar suas próprias feras, o menino volta para casa, onde encontra o jantar esperando por ele - ainda quentinho.

No início da década de 1960, quando o livro foi publicado pela primeira vez, o “vá para a cama sem jantar” era um tratamento (ou retaliação) comum. Assim como “quem manda aqui sou eu” ou “vai já para o castigo”. Naqueles tempos, esse tipo de punição poderia até ser considerada benevolente, já que não envolvia castigo físico. O menino “apenas” ficaria fechado no quarto, possivelmente, com fome, até que os adultos decidissem que era hora de levar comida para ele. Nos dias de hoje, pelo menos dentro do pequeno universo em que o protagonismo infantil vem ganhando espaço, não é tão difícil imaginar um caso assim viralizando nas redes sociais e resultando no “cancelamento” dos pais de Max. 

 

Onde vivem os monstros, Maurice Sendak

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Um protagonismo que ainda é privilegio de poucas crianças - e famílias

Infelizmente, a mudança do olhar sobre as crianças e também na forma como se calibra a relação entre pais e filhos não é uma realidade amplamente difundida. “Apesar de estarmos falando mais sobre educação e criação de filhos, esse assunto ainda é um nicho, que acontece dentro de uma bolha branca e elitista”, pontua a educadora parental Lua Barros, fundadora da Rede Amparo, instituição que funciona como rede de acolhimento a mulheres e mães.

Foi bem recentemente que a educação começou a ser repensada, que as crianças passaram a ser ouvidas, vistas e a terem suas opiniões e anseios levados em conta. Ainda há muito chão para chegar em um mundo que esteja, pelo menos, mais próximo do ideal para o desenvolvimento de uma infância plena e segura. “Acho que ainda é cedo para falar sobre protagonismo da criança. Estamos longe de ter os interesses das crianças pautando políticas públicas, por exemplo”, ressalta Lua.

Mesmo assim, o protagonismo infantil tem ganhado visibilidade e, ao menos em algumas famílias, tem aberto espaço para um longo trabalho de rompimento de ciclos geracionais de traumas, violências e invisibilização. “Ouvir a criança e ter interesse pelo seu mundo, sentir curiosidade sobre sua forma de pensar e de se expressar podem ser formas de diminuir a violência contra as crianças, que ainda é uma realidade brutal em nosso país”, diz Lua. “Esses gestos criam pontes entre adultos e crianças e isso faz bem para o corpo, para a alma e para a sociedade. Todos ganham”, afirma. 

Onde vivem os monstros, Maurice Sendak

Max: o rei de todos os monstros, na ilustração de Maurice Sendak em Onde vivem os monstros

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Limite x liberdade: a busca do equilíbrio ao educar

Em uma educação segura e equilibrada, o adulto segue sendo a margem para a criança. “Ele não abre mão de seu papel, mas também não se isola em sua autoridade, porque entende que pode transitar, sem deixar que a criança oriente a relação, já que isso não é saudável para ninguém”, pondera. 

Encontrar esse equilíbrio não é fácil. De um lado, há adultos com receio de perder a autoridade. Que acreditam que o papel deles é mandar e que à criança cabe apenas obedecer, sem questionar, sem ser ouvida, sem ser considerada. De outro, há adultos que “perdem a mão” e deixam de oferecer a orientação e os limites de que essa criança precisa para aprender a navegar pelo mundo de forma segura, entendendo como funcionam as relações e o mundo.

 “A criança não existe sem o adulto. E esse adulto serve para margear o mundo da criança. Deixar de dar limites é deixar de cuidar”, Lua Barros, educadora parental

Para a psicóloga Caroline Alonso, de São Paulo (SP), a criança não deve ser colocada na mesma posição que os pais. Quando a criança não consegue compreender que há regras, limites, hierarquia, porque os pais não fazem esse papel, cria-se uma realidade que não é positiva porque, mais tarde, no mundo, essa criança nem sempre será o centro do universo. “Muito pelo contrário”, afirma. “A chance de esse ser humano, que foi o protagonista da casa a vida toda, se frustrar na vida adulta e não saber lidar bem com isso é gigantesca”, acrescenta. “Não vivemos em uma sociedade totalmente anarquista e liberal, onde todo mundo pode sair fazendo o que quer e o que não quer. Então, cabe a nós fazer o nosso papel de educar os filhos para saber viver em sociedade”, afirma ela. 

É um imenso desafio guiar, dosando limites com autonomia e liberdade para ajudar os filhos a questionarem e desenvolverem a própria personalidade. E o grau de dificuldade vai aumentando conforme os pequenos crescem e compreendem que são pessoas diferentes dos pais. 

 

Onde vivem os monstros, Maurice Sendak

Depois de domar seus próprios monstros, Max parte de volta para casa em seu barquinho em Onde vivem os monstros

"Crianças existem para além de nós"

Alguns adultos acreditam que as crianças “testam os limites”. Chegam a acusá-las de manipuladoras. Essa visão, aponta Lua Barros, já demonstra nossa falta de entendimento sobre o mundo da criança e suas fases. Segundo ela, o que a criança faz não é testar limites, mas começar a existir e se ver para além de seus cuidadores. “Isso é assustador e, ao mesmo tempo, incrível. Imagine reconhecer que você é uma pessoa: não é sensacional?”, pergunta. “Mas os adultos temem muito esse momento. Eles não querem ser questionados, não querem ter suas ordens e modelos de existência perturbados pela ideia de mundo que a criança traz”, diz. É recorrente que essa fase seja classificada como um comportamento opositor. Lua, porém, traz outro olhar: “É um lembrete de que os filhos existem para além de nós e que precisamos aprender com eles”. 

Sim, embora os pais tenham a responsabilidade e o papel de serem os adultos da relação, de serem guia, margem, limite, trilho, nenhuma relação é unilateral. Não são só os pequenos que aprendem com os adultos. O inverso também é verdadeiro - e de uma forma muito intensa. “É preciso que as relações familiares sejam pautadas no respeito. E isso significa que o adulto vê a criança e a criança vê o adulto. O adulto sustenta a criança, enquanto ela descobre e desbrava o mundo e a criança confia no adulto cuidador como guia. Nesse processo, precisa existir limite, regra e também flexibilidade”, reflete. 

O sonho de muitos pais segue sendo criar filhos bonzinhos e educados, mas será que isso é bom mesmo? E, se for, é vantajoso para quem? “O conceito de criança obediente me chega com desconforto, porque essa palavra carrega um silenciamento”, ressalta Lua. Essa expectativa sobre um "bom" comportamento ganha ainda mais força quando se fala de meninas - o que ajuda a perpetuar o machismo. “Prefiro orientar as famílias para o diálogo, para o aprendizado mútuo, para criar espaço para as emoções”, aponta. Ajudar uma criança a trilhar seu caminho no mundo e na vida junto à sociedade, orientando e oferecendo suporte, com regras e limites claros, além de muita conversa, é diferente de criar uma criança “boazinha”

 

Na prática, o que fazer?

Se não podemos ser autoritários demais ou permissivos demais, é difícil encontrar um caminho do meio, mas ele existe. “Equilíbrio é tudo na vida. Não precisa ser 8 nem 80. Você não precisa ser aquele pai ou aquela mãe da geração em que as crianças não podiam falar um ‘a’ sem ouvir coisas como: ‘quem manda aqui sou eu e você faz o que eu quero e acabou’”, diz a psicóloga Caroline. “Era uma educação em que pai e mãe mandavam, a criança só obedecia e ninguém podia ter voz para nada. Mas também não precisa ser liberal a ponto de a criança se sentir a dona da casa, das regras e de tudo. Isso também não é positivo”, pondera.

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As maneiras de agir e de educar, é claro, variam muito de acordo com a situação, com o contexto, com a família, com a criança. Um exemplo prático trazido pela psicóloga é um momento que, para muitos pais, causa lágrimas e sofrimento: a hora de vestir o filho para sair. Sabe quando você quer por uma roupa, a criança quer outra, está frio e a criança quer sair de regata ou está calor e seu filho quer usar meia calça e bota? Para oferecer uma escolha, permitindo que a criança exerça sua autonomia e sua voz de maneira segura e prática, os pais podem montar dois looks e perguntar qual ela prefere. “A criança entende que há algo definido e que ela tem uma opção para escolher”, afirma. Pode ser uma tentativa menos conflituosa e mais prática de resolver uma situação diária, com potencial para virar drama. 

A verdade é que não existe uma receita para as relações humanas. “Criar filhos dá trabalho justamente por isso”, diz a Lua Barros. “Uma criança questionadora demanda muita energia e é natural, diante da vida que levamos, nos sentirmos esgotados com o vai e vém de perguntas. Isso não quer dizer que mandar seu filho calar a boca vai resolver. Os adultos precisam entender que é possível encerrar conversas, sem que isso seja um passo violento. Não podemos ter medo de colocar os limites. E o equilíbrio nunca é uma linha reta. Tem dias mais fáceis e tem dias mais difíceis e isso não significa que a criança não tem jeito ou que é desobediente e nunca vai encontrar um caminho. Calma. O tempo é um agente importante na educação dos filhos”, afirma. 

O mundo gira ao redor de quem?

Outro aspecto da parentalidade atual que difere muito do que era criar filhos há poucas décadas é a adaptação com a chegada de uma criança. Atualmente, muitos pais - aqueles dentro da bolha de privilégios já mencionada - modificam toda a vida para atender às necessidades da criança. De repente, os horários mudam, as saídas precisam ser programadas de um jeito diferente ou até canceladas, o aspirador não pode ser ligado no mesmo horário por conta da soneca do bebê. Tudo isso é compreensível e muito válido, mas, como tudo, também requer equilíbrio, para que não tenha um efeito negativo.

De nada adianta ter um bebê com uma rotina exemplar, se, para que isso aconteça, alguém fique totalmente exausto ou tenha seus desejos anulados. “Acho muito natural a família querer se adaptar com a chegada de um filho. A preocupação com o sono e alimentação são importantes, mas não devem se tornar uma prisão, até porque quem fica presa, no final das contas, são as mães”, lembra Lua Barros. Para ela, é importante conseguir equilibrar os programas, desejos e necessidades de todos, para que os pais não se sintam regidos pelas crianças. "Gosto de pensar na importância do ritmo, mais do que de uma rotina. Se observarmos o ritmo, ele é um convite para uma dança, onde adultos e crianças se movimentam. Filhos não precisam ser uma bola de ferro nos pés dos pais. Eles podem ser belas asas”, afirma. E quem é que não quer voar?

Ler para enxergar melhor

No meio dessa jornada cheia de afeto e de dúvidas que é ser mãe, pai ou cuidador, existem várias ferramentas que podem ajudar a encontrar conexão, gerar empatia,e refletir sobre seu papel no mundo - assim como ajudar seu filho a pensar no dele. A leitura é uma das mais poderosas. “Ler salva o nosso mundo particular. Livros são caminhos; são possibilidades que se abrem à medida que viramos as páginas. Os livros podem ser excelentes ferramentas para as crianças elaborarem seus sentimentos e comportamentos. Elas podem se ver através dos personagens - e isso é lindo”, diz Lua. 

Já colocou Onde vivem os monstros na lista de livros para curtir com o seu filho? Além dele, aqui vão mais algumas sugestões: 

O mundo é de todo mundo, Tati Bernardi (Companhia das Letrinhas)

O mundo é de todo mundo, Tati Bernardi

Enquanto passeia com sua mãe, Margarida quer muitas coisas: quer brincar no balanço por todo o tempo que desejar, quer beber água de coco antes das outras pessoas... quer ser sempre a prioridade. E, por mais que sua mãe explique, Margarida não consegue entender por que, afinal, o mundo não é só dela. Porém um encontro surreal com o próprio mundo tem tudo para fazer com que Margarida consiga olhar ao redor e perceber as pessoas à sua volta de um jeito diferente...

O muro no meio do livro, Jon Agee (Pequena Zahar)

O muro no meio do livro

Tem um muro no meio deste livro. E um pequeno cavaleiro está confiante de que o muro protege o seu lado, o lado bom do livro, dos muitos perigos que estão do outro lado - um tigre faminto, um rinoceronte gigante, além de um ogro terrível que seria capaz de comê-lo com uma só mordida. Mas nem tudo é o que parece... Com gentileza e humor, O muro no meio do livro, do aclamado autor-ilustrador americano Jon Agee, mostra que às vezes os muros estão mais dentro da nossa cabeça do que fora.

Mamãe está cansada, Vanessa Barbara (Companhia das Letrinhas)

Mamãe está cansada

Uma menina acabou de voltar da escola com a mãe, mas o dia está longe de acabar. A garotinha está pronta para brincar: de astronauta, com o rolo de papel higiênico, redecorando a casa, fazendo experimentos científicos... Mas mamãe está cansada - muito cansada. Este livro ilustrado vai encantar os pequenos leitores, que estão sempre prontos para a próxima brincadeira, mesmo quando os pais não estão tão animados assim...

A mãe que chovia, José Luís Peixoto (Companhia das Letrinhas)

A mãe que chovia

O menino desta história é filho da chuva. E, com uma mãe tão necessária a todos, tem de aprender, a duras penas, a partilhar com o mundo todo o seu cuidado e dedicação. Através do seu percurso, ele dá aos leitores uma lição de generosidade e perseverança - e acaba por descobrir uma das forças mais poderosas da natureza: o amor incondicional das mães.

Se eu tivesse asas, Guilherme Karsten (Brinque-Book)

Se eu tivesse asas

"E se numa noite dessas eu acordasse com um par de asas?" Partindo dessa pergunta, esta narrativa cativante nos convida a uma aventura além-mar em que tudo é descoberta e sonho. O menino-pássaro conhece diferentes lugares, faz amigos, se surpreende, se diverte... E depois da longa viagem, nos mostra que nada é melhor que voltar para casa. Crescer é muito bom, afinal. Mas poder voltar ao ninho, também!

O dia dê, Estevão Azevedo (Companhia das Letrinhas)

O dia dê

Já imaginou morar em um reino onde existe o Dia Nacional de Andar para Trás, o Dia Nacional do Pum com a Boca, o Dia Nacional do Imita-bicho e muitos outros? É o caso de Clarice, que vive uma nova aventura a cada proclamação do Rei. Mas a confusão começa mesmo quando chega o Dia Nacional do Rei ou da Rainha por um Dia. Agora, todo mundo vai ter o gostinho de comandar a nação - e, na vez de Clarice, ela vai se ver diante de um grande desafio.

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