Os não-ditos das leituras silenciosas

Guimarães Rosa já anunciava em Grande Sertão: Veredas: "O silêncio é a gente mesmo demais". Foi ele mesmo um menino quieto e sensível durante a infância. Do silêncio fizeram-se as palavras. "O silêncio está na constituição da poesia porque é parte integrante de alguns de seus principais elementos: ritmo e imagem. Não há ritmo sem pausas, não há som, sem silêncio. Do mesmo modo, não há imagem sem vazio", explica Cristiane Tavares, especialista em literatura infantil e coordenadora do curso de pós-graduação Livros, crianças e jovens: teoria, mediação e crítica, do Instituto Vera Cruz.

Ela lembra que Guimarães Rosa é um grande representante da tríade literatura, infância e silêncio, tema importante para se discutir as infâncias contemporâneas. "Penso que o silêncio é necessário para as crianças, tanto quanto para a literatura, pois é condição para a criação, é janela para a contemplação. Em tempos de tanta velocidade, de excesso de ruído, profusão de imagens, o silêncio é raridade, deve ser preservado."

 

Ilustração Marcelo Tolentino

 

Ao mesmo tempo, a especialista reconhece que nem todos os silêncios são poéticos. Cita alguns presentes na infância, advindos de experiências de violência, ausência, solidão e preconceito. "Em todos esses casos, em maior ou menor grau, sempre haverá (quero crer!) pontos de fuga para silêncios poéticos que devolvam a dignidade e a beleza às infâncias. Mas é preciso muito trabalho para desenhar esses pontos de fuga na realidade." São pontos de fuga que, segundo a pesquisadora, alimentam "de dentro para fora a complexidade de existir".

Na literatura, esses silêncios reverberam naqueles textos que não dizem tudo de um modo óbvio, mas abrem espaço para o diálogo com o leitor. Habitam, por exemplo, os livros-álbum, nos quais o texto e a imagem têm uma relação intrínseca. Nessas obras, o silêncio é pré-requisito. São desafiadores porque pedem uma mediação mais silenciosa, sem tanta fala do adulto. "Nem todo leitor gosta de se deparar com esses espaços em branco porque podem ser angustiantes mesmo. Mas a angústia faz parte da experiência leitora e pode levar a lugares pouco visitados por nós."

Daí vem a necessidade de nos silenciarmos após a leitura, sem precisar prestar contas, convencer o outro a ler também ou elaborar rapidamente alguma interpretação do que se leu. Assim também no conta Teresa Colomer, em Andar entre livros – a leitura literária na escola (Global, 2007): "A leitura autônoma, continuada, silenciosa, de gratificação imediata e livre escolha, é imprescindível para que o próprio texto ensine a ler”.

Leia abaixo a conversa completa com Cristiane Tavares sobre silêncio, infância e literatura.

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Em artigo publicado na revista Emília, Cecilia Bajour cita Breton: “O silêncio não é nunca o vazio, mas a respiração entre as palavras, a dobra momentânea que permite a fluência dos significados, o intercâmbio de observações e emoções, o equilíbrio das frases que se amontoam nos lábios e o eco de sua recepção, é o tato que cedo ao uso da palavra mediante uma rápida inflexão da voz, explorada de imediato pelo que se espera do momento favorável”. Qual a relação entre silêncio, literatura e infância?

Cristiane Tavares – Quando penso nessa relação entre “silêncio, literatura e infância”, logo me vem uma frase do Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas: “O senhor sabe o que o silêncio é? O silêncio é a gente mesmo demais”. Gosto muito desse modo mineiro e roseano de entender o silêncio. E cito esse autor porque penso que ele traduz muito bem essa tríade – silêncio, literatura e infância – em sua obra. Miguilim é um exemplo: menino quieto, sensível, que armava arapuca e pensava no que deviam sentir os pássaros quando estavam presos, separados dos seus companheiros, e observava como saíam felizes soltos das arapucas. Ele mesmo, o Rosa, foi menino quieto, prezava o silêncio. Esse menino quieto, quando adulto, falava mais de cinco línguas... O silêncio é também condição para a aprendizagem. Da cabeça e do coração desse menino quieto saíram obras-primas como Grande Sertão e Manuelzão e Miguilim. Penso que o silêncio é necessário para as crianças, tanto quanto para a literatura, pois é condição para a criação, é janela para a contemplação. Em tempos de tanta velocidade, de excesso de ruído, profusão de imagens, o silêncio é raridade, deve ser preservado.

 

Como a imagem pode proporcionar o silêncio no caso dos livros-álbum? E, como contraponto, a imagem pode ser ruidosa? Por quê?

Cristiane Tavares – No livro-álbum, construído a partir da relação intrínseca entre texto e imagem, o silêncio é condição, pré-requisito. Funciona como uma abertura para que o diálogo com o leitor seja mais intenso. As imagens que não dizem tudo o que está no texto, por exemplo, deixando lacunas a serem preenchidas pelo leitor, são uma espécie de silêncio, uma pausa. Nem todo leitor gosta de se deparar com esses espaços em branco porque podem ser angustiantes mesmo. Mas a angústia faz parte da experiência leitora e pode levar a lugares pouco visitados por nós.

Uma aluna da pós que coordeno no Instituto Vera Cruz, Luísa Setton, está estudando a recepção das crianças na leitura de livro-imagem e um dos aspectos que a motivou a pesquisar esse tema foi justamente a observação de que os livros-álbum, e em especial os livros-imagem, pedem uma mediação mais silenciosa, que evidencie as lacunas e abra espaço para a livre expressão do leitor. Um desafio para professores e mediadores mais acostumados com encaminhamentos muito centrados na fala do adulto.

Respondendo a sua segunda questão, sim, uma imagem pode ser ruidosa quando comunica em excesso. Isso pode ser intencional, para provocar certo desconforto no leitor, fazê-lo experimentar certa vertigem ao construir sentido para a leitura. Mas pode acontecer também de uma imagem com ruído em excesso acabar se tornando óbvia, por exemplo, pouco atraente. O excesso provocando esvaziamento de sentido. Acontece muito com obras que se propõem atingir muitos objetivos de uma única vez – instruir, informar, divertir –, deixando de lado o caráter artístico.

 

O que é um texto silencioso? Poesia é silêncio?

Cristiane Tavares – Um texto é silencioso quando não diz tudo, não diz de modo óbvio. Deixa espaço para que o leitor dialogue com as palavras e sentidos presentes e ausentes ali. Isso não tem, necessariamente, relação com extensão – um texto pode ser longo e silencioso, curto e ruidoso. O silêncio está na constituição da poesia porque é parte integrante de alguns de seus principais elementos: ritmo e imagem, por exemplo. Não há ritmo sem pausas, não há som, sem silêncio. Do mesmo modo, não há imagem sem vazio. A poeta Mariana Ianelli tem um livro chamado Fazer silêncio (Iluminuras, 2005). O poema que dá título ao livro remete um pouco a essa relação que estou fazendo aqui entre som e sentido, dito e não-dito. Destaco alguns versos: “Jazida inexplorada,/ Casa sem mobília,/ Vácuo do não-dito,/ Êxtase nunca interrompido. (...) Líquido momento de sentir/ E estar sozinho/ Fazer silêncio.” Um outro poeta que explora muito bem essa relação entre som e sentido é o Eucanaã Ferraz, que tem um belo livro para crianças publicado pela Companhia das Letrinhas, Cada coisa. O poema Coisando, por exemplo, ilustra muito bem o que estamos conversando aqui:

“Gosto de coisas nas coisas.

Desde pequeno coisava comigo

essa coisa curiosa:

as coisas fazem cócegas nos nossos olhos!

 

Os olhos sabem de tudo.

E ficam assim, refletindo, mudos,

matutando, coisando,

cuidando do mundo.”

Há nesse poema tantos sinônimos para silêncio: matutar, coisar, deixar os olhos cuidar do mundo. É tão Miguilim isso!

 

Gandhy Piorski, pesquisador do imaginário, do brincar e da infância, diz que a natureza fornece o silêncio necessário para as crianças. Longe de substituir a natureza, a literatura poderia ser uma possibilidade de proporcionar uma paisagem de silêncios à criança urbana, sempre com agendas cheias e tempos fragmentados?

Cristiane Tavares – Bonito isso, “uma paisagem de silêncios”! Sim, acredito que sim. Mas não qualquer leitura, não em qualquer situação. Para que a experiência literária se torne janela para paisagem de silêncios, há de haver primeiramente “uma casa”, “um chão”, uma mínima estrutura de apoio para que se possa alçar voos. Na vida estressante das crianças cheias de compromissos, tão carentes de uma presença afetiva, o perigo é que o vazio seja tão grande que não haja espaço interno para contemplar paisagem silenciosas. No caso das crianças que ainda não têm seus direitos básicos respeitados – alimentação, moradia, educação –, pode não haver espaço sequer para construção dessas janelas. E não gosto de pensar ingenuamente, engrossando discursos como “mas a criança sempre dá um jeito de imaginar, inventar, viajar com a leitura”. Não é bem assim, não deve ser. É preciso que ela imagine, invente, viaje, tendo condições mínimas garantidas. Daí, sim, podemos cuidar de alimentar a paisagem da janela com o que de melhor houver.

 

E qual silêncio guarda a infância? E qual é o lugar do silêncio na infância contemporânea? Os silêncios têm sido respeitados?

Cristiane Tavares – Talvez muitos silêncios distintos guardem diferentes infâncias. O silêncio pode guardar uma infância marcada por abusos de todo tipo, difícil de expressar em palavras. O silêncio pode guardar uma infância marcada por ausências, mais silenciosa e solitária do que gostaríamos. O silêncio também pode guardar experiências de profundo afeto que preferem ficar quietinhas, alimentando de dentro para fora a complexidade de existir.

Novamente, para falarmos em “infância contemporânea”, não podemos deixar de considerar que vivemos numa sociedade extremamente desigual, onde as infâncias são múltiplas. Nesse contexto social, o lugar do silêncio na infância varia muito: há silêncios impostos à infância de algumas crianças negras e indígenas, por exemplo, que sofrem preconceito, racismo, indiferença de modo violentamente silencioso; há silêncios impostos à infância das crianças que vivem na miséria ou na extrema pobreza e que sofrem de carências básicas; há silêncios roubados da infância de crianças que são expostas precocemente na mídia perversa; há silêncios difíceis de serem respeitados na rotina insana que marca a infância de crianças excessivamente atarefadas. Em todos esses casos, em maior ou menor grau, sempre haverá (quero crer!) pontos de fuga para silêncios poéticos que devolvam a dignidade e a beleza às infâncias. Mas é preciso muito trabalho para desenhar esses pontos de fuga na realidade.

 

Como o silêncio pode dialogar com a autonomia do jovem leitor?

Cristiane Tavares – Silêncio e autonomia leitora andam lado a lado. Do mesmo modo que é importante compartilhar leituras e conversar sobre os livros, é fundamental respeitar e proporcionar momentos de silêncio depois da leitura. Ler sem precisar prestar contas, ler sem precisar convencer o outro a ler também, ler sem precisar elaborar rapidamente o que se leu. Uma situação alimenta a outra, a autonomia se constrói firmada na partilha e, em especial na escola, as duas situações precisam ser garantidas: ler com os outros e ler sozinho. Teresa Colomer reflete muito sobre isso em Andar entre livros – a leitura literária na escola (Global, 2007) e destaca a importância de garantir momentos de leitura silenciosa na sala de aula: “A criação de um espaço de leitura individual na escola pretende dar a oportunidade de ler a todos os alunos; aos que têm livros em casa e aos que não os têm, aos que dedicam tempo de lazer à leitura e aos que só leriam os minutos dedicados a realizar as tarefas escolares na aula. A leitura autônoma, continuada, silenciosa, de gratificação imediata e livre escolha, é imprescindível para que o próprio texto ensine a ler”.

 

Poderia dar alguns exemplos de livros que privilegiam o silêncio de algum modo em suas narrativas (verbal e visual)?

Cristiane Tavares – Há muitos e selecionar é sempre um desafio e um perigo (os esquecimentos traem!). Mas vou priorizar, dentre os livros destinados às crianças, os livros-álbum, livro-imagem e livros de poesia. Entre os livros-álbum, gosto muito do trabalho do Odilon Moraes que explora lindamente essa relação do texto e da imagem com o silêncio: Rosa (Edições Olho de Vidro), Pedro e Lua (Jujuba), O matador (texto Wander Piroli; CosacNaify), Ismália (CosacNaify), Lá e Aqui (texto Carolyna Moreira; Pequena Zahar). De livro-imagem, artistas variados: Bárbaro (Renato Moriconi, Companhia das Letrinhas), Vazio (Catarina Sobral, Ed. 34), Gente de cor, cor de gente (Mauricio Negro, FTD), Benedito (Josias Marinho, Ed. Caramelo), Migrando (Mariana Chiesa Mateos, Ed. 34). E os de poesia: Um dia, um rio (Leo Cunha e André Neves, Ed. Pulo do Gato); Poemas para ler com palmas (Edimilson de Almeida Pereira, Mazza Edições); Menino Drummond (seleção e ilustrações Angela-Lago, Companhia das Letrinhas), Mundo palavreado (Ricardo Aleixo, Ed. Peirópolis), Chão de peixes (Lúcia Hiratsuka, Pequena Zahar), Poeminha em língua de brincar (Manoel de Barros, Ed. Record).

 

Vamos fazer uma brincadeira?

O silêncio está na literatura quando… há espaço e escuta para o não-dito, há olhos para ver os vãos entre as imagens.

Uma leitura silenciosa é… um encontro com a nossa “outridade”.

As lacunas entre as palavras possibilitam... pausas para amplificar a escuta, saltos para impulsionar voos, risco de queda.

 

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