O olhar das crianças revela a miopia dos adultos
“Olhamos para o mundo uma vez, na infância. O resto é memória”. Foi a poetisa norte-americana Louise Glück quem fez essa afirmação, que parece corroborar uma observação comum de quem tem convívio diário com as crianças: sua espantosa capacidade de enxergar as coisas de outro jeito, algo que parece esmorecer com o tempo, conforme crescemos. Mas que jeito é esse, afinal? Será que conseguimos preservá-lo? E, principalmente, como fazemos para observar o mundo emprestando o olhar das crianças?
No livro Os óculos do Lucas (Brinque-Book) – estreia na literatura infantil da escritora Natalia Timerman (autora do premiado Copo vazio) e da psicóloga e musicista Bel Tatit (ex-integrante do grupo de música infantil Tiquequê) –, o leitor é convidado a experimentar como é espiar o mundo com essa lente que tudo transforma.
Os óculos do Lucas presenteia o leitor com um par de óculos muito especial, capaz de ampliar a capacidade de enxergar tanto a realidade quanto os sonhos mais fantásticos
Com ilustrações da artista Veridiana Scarpelli, o livro conta a história de um garoto chamado Lucas que vê – literalmente – tudo à sua volta ganhar novas cores e contornos. Tudo porque ele ganhou um par de óculos que modifica como as coisas são. Em uma metáfora engenhosa sobre a habilidade de ressignificar o olhar, as autoras utilizam a experiência do protagonista para pautar a importância de enxergar verdadeiramente aquilo que nos cerca, muito além das questões de miopia, astigmatismos e afins.
“No mundo do Lucas uma coisa vivia grudada na outra. As árvores eram de um verde só, e o mar não passava de um barulho”, diz o texto. Será que nós, adultos, também nos sentimos assim, como se as coisas tivessem perdido contorno e o mundo fosse um grande borrão visual? O livro brinca com a ideia do olhar de variadas formas, tanto no campo físico quanto no simbólico, abrindo espaço para conversas com as crianças sobre a importância de dizer como se sentem a partir daquilo que veem da vida.
Natalia Timerman e Bel Tatit estreiam na literatura infantil com o livro Os óculos do Lucas, um convite para experimentar os múltiplos pontos de vista da criança.
“Como ficariam os sonhos se ele usasse óculos também na hora de dormir. Seriam mais ou menos assustadores? Mais ou menos fantásticos?”, questiona o livro. Isso porque, na história, o menino Lucas começa a investigar se esse objeto tão fantástico como os óculos também consegue transformar as imagens não só da “vida real”, mas também dos sonhos. Os óculos do Lucas é uma obra para mostrar que não é só a beleza que está nos olhos de quem vê, mas também os sentidos, as cores e os contornos das coisas.
Para aprofundar essas questões, conversamos com as autoras – ambas psicanalistas com experiência no atendimento psicológico infantil – para mergulhar nesse universo do olhar das crianças, e ampliar as possibilidades de leitura do livro. Abaixo, elas respondem – a quatro mãos – como pensaram essa história.
Confira a entrevista completa!
Como o tema do livro atravessa a vivência de vocês como indivíduos, como mães e também como artistas?
Natalia Timerman e Bel Tatit – Nosso livro surgiu de algumas perguntas e também nos propôs outras.
Quem é mais cego, aquele que não consegue enxergar a realidade ou aquele que não se permite sonhar fora dos contornos? (Natalia Timerman e Bel Tatit, autoras)
Será que quando nos pautamos num realismo supostamente objetivo não estamos apenas reproduzindo uma visão limitada do mundo? O que é a realidade, o que é o sonho, e quais os pontos de encontro entre eles?
Somos pessoas que se importam com pessoas, e é assim que o livro atravessa nossas vivências. Gostamos de ouvir e aprender com outros que pensam e fazem coisas bonitas, inusitadas, transformadoras — o que inclui as crianças, o que inclui nossos filhos.
A maternidade instituiu em nossas vidas um antes e um depois, como os óculos para Lucas. Fomos desafiadas, desde o primeiro dia, a lidar com a ideia de alteridade: a cada bebê que nasce, morre um bebê ideal fantasiado por uma família. E então, dia após dia, fomos aprendendo a enxergar e a cuidar de cada filho, e eles também foram aprendendo a se relacionar com a gente.
Ao apresentar um personagem que está reaprendendo a enxergar, o livro parece brincar com as diferenças entre o olhar adulto e o da criança. Como vocês veem essa assimetria na prática?
Natalia Timerman e Bel Tatit – Lucas se surpreende com as lentes mágicas dos óculos e, escondido de todo mundo, coloca os óculos à noite para ver como ficam os sonhos. Esse gesto diz de uma abertura, de uma possibilidade de expansão que as crianças têm e que vamos perdendo conforme crescemos, conforme precisamos seguir cada vez mais regras. O gesto de Lucas é ao mesmo tempo ingênuo e sábio; é o gesto de quem vive segundo o signo da descoberta, da surpresa e do encantamento, capacidades que costumam ficar opacificadas na vida cotidiana de um adulto.
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O que os adultos aprendem com a habilidade de olhar das crianças?
Natalia Timerman e Bel Tatit – O olhar das crianças para o mundo revela sutilezas que escapam aos adultos no dia a dia, na correria do trabalho, das tarefas várias. Elas têm um frescor diferente por terem chegado há menos tempo no mundo, mas também por sua relação diferente com o tempo. Os adultos só terão essa habilidade se puderem desacelerar, ouvir, conversar, olhar e sonhar. Talvez seja um ponto em comum entre a arte, a infância e os sonhos: essa função de fazer furo no que já está estabelecido, de suspender os automatismos.
As crianças estão muito mais próximas ao universo da fantasia, o que facilita a expressão de seus medos, monstros e emoções pela via simbólica. (Natalia Timerman e Bel Tatit, autoras)
Quem se propõe a acompanhar a função elaborativa de suas brincadeiras, desenhos e sonhos, tem a chance de entrar em contato com um repertório riquíssimo para nossos próprios conflitos.
Em um dado momento, o livro diz: "Como se dentro do mundo, de cada coisa, tivesse também um mundo". Que mundo é esse que só alguns podem ver? E por que as crianças têm mais olhos para eles?
Natalia Timerman e Bel Tatit – A criança está formando seu olhar para o mundo, sua posição diante das coisas. Não é um olhar totalmente livre, pois já herda uma cultura, uma história familiar mas, ainda assim, é um olhar menos enrijecido, mais fresco e curioso. A criança descobre o mundo a cada momento e consegue construir hipóteses menos preconceituosas e amarradas que os mais velhos, desestabilizando os sentidos já dados.
Nosso olhar não é livre. Para a psicanálise, só existe realidade subjetiva, pois não existe uma apreensão puramente objetiva da realidade. Nosso olhar já é filtrado ou, talvez, editado. (Natalia Timerman e Bel Tatit, autoras)
O interessante é que cada pessoa tem uma fantasia singular (é assim que a psicanálise chama) que dá as bordas da percepção das coisas. Podemos estar no mesmo ambiente, mas cada pessoa apreende a cena de um jeito, a depender da própria fantasia.
Nosso livro fala tanto da importância dos detalhes que se perdem num olhar mais superficial da realidade, quanto da possibilidade de ampliar as referências imaginárias do mundo que temos. É necessário ter uma certa margem de liberdade na relação com as coisas, característica forte entre as crianças.
Dentre os pontos em comum de vocês, está o fato de que ambas perpassam esse universo da psicologia e da psicanálise. O que há de mais fascinante na mente das crianças?
Natalia Timerman e Bel Tatit – A capacidade de olhar e ver não cessa completamente quando crescem, ou melhor, quando crescemos: no belo ensaio “Escritores criativos e devaneios”, Freud relaciona o brincar à criação artística, literária. Nosso livro é, então, também o nosso jeitinho de recuperar o que há de fascinante na infância. As crianças brincam, se esquecem na brincadeira, entregues, inteiras; as crianças vêem o mundo com olhos arregalados.
O texto de Bel Tatit e Natalia Timerman, combinado às ilustrações de Veridiana Scarpelli, dá vida a uma obra única repleta de possibilidades de leitura, para curiosos e sonhadores de todas as idades
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Como artistas, vocês veem diferença entre produzir para crianças ou para adultos? E, se vocês pensam na criança na hora de criar, que criança é essa?
Natalia Timerman e Bel Tatit – Cada livro pede uma voz que o possa dizer, uma forma específica, sempre diferente. A Bel já tinha uma longa trajetória de criação para o público infantil, mas por meio da música; a Natalia já escrevia livros, mas para adultos. Nosso livro é a convergência dessas trajetórias diferentes, e foi escrito pensando nos nossos filhos, de cinco anos, nas questões que eles vivem e suscitam, e nas crianças que habitam o mesmo mundo que eles, esse nosso mundo em que sonhar, ainda que seja imprescindível, não tem tido tanto valor.
Se vocês pudessem ter uma superlente mágica de aumentar alguma coisa nesse mundo, que coisa seria essa e por quê?
Natalia Timerman e Bel Tatit – A gente aumentaria a parte da floresta amazônica que ainda não foi queimada; a gente aumentaria o diálogo verdadeiro, o senso crítico e a gentileza.