O livro como espelho de um mundo diverso

 

Quem escreve, publica e dissemina as histórias para o público infantojuvenil? Depois, quais são as pessoas que organizam feiras, convenções e outros encontros que criam pontes entre autores e leitores? Quais são as crianças, as infâncias e os contextos apresentados nas escolas, bibliotecas e livrarias? Algumas dessas questões foram disparadoras para a criação de um movimento que se iniciou com a hashtag #WeNeedDiverseBooks, criada no início de 2014.

Tudo começou numa troca de tweets feita entre as autoras Ellen Oh e Malinda Lo, que expressaram sua frustração com a falta de diversidade na produção literária para crianças. Não foi a primeira vez que autores do universo infantojuvenil demonstraram essa insatisfação, mas nessa havia um incômodo especial: o painel só composto pela participação de autores homens e brancos reunidos para a BookCon, convenção anual de fãs que combina a cultura pop e a indústria do livro.

Por meio de comentários nas redes sociais, diversos outros autores, editores, leitores também se manifestaram, planejando juntos o que poderia ser feito. Com a hashtag #WeNeedDiverseBooks (“Precisamos de livros com diversidade”, em tradução livre), a autora norte-americana Aisha Saeed reuniu o movimento em um grupo uníssono que carrega ainda hoje o mesmo nome e a mesma meta: colocar mais livros com diversos personagens nas mãos de todas as crianças.

 

 

O que começou como uma campanha de conscientização de mídia social rapidamente se transformou em um movimento global que exigiu a atenção da indústria editorial, da mídia e dos leitores em todos os lugares. Hoje, a We Need Diverse Books (WNDB) é uma organização sem fins lucrativos formada por amantes de livros infantis e completa em 2019 cinco anos com projetos que visam mudanças essenciais no setor editorial, “promovendo literatura que reflita e honre a vida de todos os jovens”, como explicam no site.

A escritora Ellen Oh, que originou os posts que incendiaram o movimento, é a cofundadora e presidente da WNDB, do qual fazem parte indivíduos e grupos envolvidos em vários níveis de publicação, como editores, autores, distribuidores, livreiros, bibliotecários, educadores, pais e alunos. “No final do dia, quando olho para as minhas prateleiras, penso: posso estar melhor. Eu posso fazer mais. E eu adoraria que você se juntasse a mim”, convida a autora em uma de suas mais famosas campanhas, a Diversify Your Shelves (Diversifique suas prateleiras). Nela, a proposta é simples e voltada ao público consumidor de literatura infantil, que deve ir a qualquer livraria, comprar cinco livros que possuam personagens, autores ou uma história de diversidade, e publicar uma foto com as capas desses livros nas redes. Se não pudesse comprar, poderia recomendar livros. A ação foi planejada para durar o mês de maio de 2014, mas ainda hoje recebe posts com a tag.

 

 

Para tal, a ONG reconhece como diversidade todas as experiências que possam ser vivenciadas desde a infância, incluindo (mas não se limitando a) diversidade de gênero, sexualidade e etnia, pessoas com deficiência e minorias culturais e religiosas. Para essas crianças, existem não só os esforços para diversificar e aumentar a visibilidade de diversos livros e autores, mas também capacitar uma ampla gama de leitores no processo. É nessa dupla jornada que a WNDB se compromete com o ideal de que abraçar a diversidade levará à aceitação desses leitores mirins com empatia e, finalmente, igualdade.

 

 

É interessante notar que, para cumprir essa missão, os projetos abarcam uma definição ampla de deficiência, que inclui – além das deficiências físicas, sensoriais, cognitivas, intelectuais ou de desenvolvimento – condições crônicas e doenças mentais (incluindo dependência). Além disso, há um “modelo social de deficiência”, que diz respeito à deficiência criada por barreiras no ambiente social, devido à falta de acesso igual, estereótipos e outras formas de marginalização.

 

 

Além das campanhas de conscientização, no blog, os voluntários publicam textos sobre como histórias a respeito de incapacidades físicas geram empatia em seus leitores ou a presença de personagens LGBTQ+ nas histórias para crianças, pensando em alcançar outros autores e educadores de todo o mundo. E as iniciativas não param por aí: a We need diverse books também cria antologias de contos com trabalhos escritos por autores em crescimento com essa temática, como os laureados pelo Prêmio Walter Dean Myers de Literatura Infantil Extraordinária (The Walter Award), congratulação anual dos autores cujas obras tenham protagonistas que abordem a diversidade de maneira significativa. Também há uma homenagem para livrarias que defendem a bibliodiversidade com o prêmio Bookseller of the Year.

A iniciativa WNDB na sala de aula atende estudantes de todo o país, trazendo diversos livros e autores para suas escolas, especialmente aquelas economicamente desfavorecidas, além de programas de bolsas suplementares aos estudantes que seguem uma carreira em publicações voltadas ao público infantil. Nessa ação, contabilizou-se o equivalente a mais de US$ 75.000 doados em livros para crianças em idade escolar desde 2014. Para estudantes, também há a possibilidade participar de projetos de mentoria, no qual a ONG faz a ponte, combinando-os com um autor ou um ilustrador infantil experientes. Para esses profissionais do livro, existe também um incentivo criativo nos Retiros da WNDB – iniciados em 2017, os retiros oferecem um espaço para artistas discutirem e refletirem seu trabalho na literatura infantil.

O projeto mais recente é OurStory, uma ferramenta para todos os públicos, de crianças e adolescentes a pais e educadores, descobrirem livros com conteúdo diversificado e por criadores de conteúdo de comunidades marginalizadas. O OurStory, está disponível online nas suas versões para crianças, adolescentes ou profissionais da área, com associações gratuitas e pagas, com o mesmo material oferecido também no app, disponível para sistema Android.

Com o projeto, a cada mês, o assinante tem acesso à uma seleção de “livros janela” ou “livros espelho”, conceito criado pela biblioteconomista e professora da Universidade de Ohio Rudine Sims Bishop. Ela cunhou os termos para obras com a capacidade de fazer as crianças verem a si mesmas e a sua cultura refletida nas páginas, como um espelho, ou para livros que dessem acesso a essa experiência para outras crianças, como uma janela para a vivência e cultura de outros grupos que não o do leitor.

 

 

Apesar de os projetos terem foco em crianças, autores e grupos estadunidenses (ou falantes da língua inglesa, no caso das ações online), a We Need Diverse Books deixa indicações sobre o que é possível fazer para ajudar, se não é possível se voluntariar ou participar das campanhas. Entre as dicas para o público leitor, estão comprar livros que abarcam a diversidade, solicitá-los nas bibliotecas da sua região, ou recomendá-los nas redes sociais, por exemplo. Ou até mesmo escrever para o autor agradecendo a experiência. Também há orientações para artistas, editoras, bibliotecas e livrarias se posicionarem pela diversidade na literatura infantil nos diversos níveis de trabalho ‒ da contratação de funcionários com diferentes perspectivas e origens à produção de um catálogo mais diverso. Quanto aos educadores e produtores de eventos, cabe criar programas que proponham uma leitura mais diversa, seja em sala de aula com uma lista de livros e palestras com autores, seja no planejamento de um evento com painéis que mostrem variedade de temas e convidados. Todas ações que ajudam a promover, como diz no site, “um mundo no qual todas as crianças possam se ver nas páginas de um livro”.

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