O Natal de asas

 

Por Ronaldo Correia de Brito

No mês de dezembro, minha cidade se cobria de branco. Eram os capuchos de algodão das paineiras, árvores que crescem, crescem, e o tronco forma uma barriga gigante. As pessoas preferem chamá-la de barriguda, ao invés de paineira. Umas dão flores rosas e outras, brancas. As do Crato eram todas brancas e ocupavam canteiros no meio das ruas. Os telhados, as calçadas e as praças ficavam cheios de lã, mas ninguém supunha que fosse neve.

 

Ilustração Marcelo Tolentino

 

Minha avó fabricava bois, carneiros e burrinhos do presépio com o algodão da paineira. Ficavam tão bonitos. No lugar dos olhinhos, ela punha contas azuis ou pretas. Um dia, atrapalhou-se e pôs olhos verdes no jumento. A gente achou que a avó tivesse ficado maluca. Ela já não enxergava bem, sofria de uma doença chamada catarata.

O Menino Jesus do presépio tinha vindo de Portugal, acho que pertencera à tataravó. De madeira, usava um vestido de seda chamado timão, igual ao que vestiam nos bebês, quando iam batizá-los. Tudo soa antigo, eu nem sei se vocês compreendem essas palavras e costumes em desuso. Quase não existe presépio ou lapinha, ninguém sabe mais o que o Menino Deus tem a ver com o Natal, ele foi expulso da história em que era o personagem principal.

Outro dia, convidaram-me para conversar com alunos de uma escola bem rica, pensavam em encenar uma peça de final de ano. Pediram ajuda e eu fui. Perguntei quem eram os personagens do Natal. Os garotos inteligentes e risonhos responderam Papai Noel, o trenó, as renas, o pinheiro, a neve, a fábrica de Gepeto, a casa de Branca de Neve; nem de longe lembravam Jesus Cristinho, Maria, José, os Reis Magos. Impaciente, eu me desesperava. Um garoto levantou o braço e disse que lembrava. E falou o peru da Sadia.

Vocês vão achar que sou um mentiroso, mas sou apenas quando escrevo ficção. Agora, escrevo uma crônica, que se trata de um gênero diferente. As crianças falam do que veem nos shoppings e nas próprias casas. Elas perderam todas as referências da tradição ibérica de celebrar o Natal. Agora, os símbolos são impostos pelo comércio e pela cultura americana e do leste europeu. Num shopping com mais de 40 graus de temperatura do lado de fora, chove neve de isopor. Engraçado, não?

Todos no Crato amavam os flocos de algodão branco das paineiras. Eles pairavam no alto e eu dava pulos, tentando alcançá-los. Punha alguns na palma da mão e soprava. Sentia prazer em vê-los ganhar as alturas. Sempre que o Natal se aproxima, eu me lembro dessa alegria e sinto vontade de chorar. Mas um prefeito da cidade mandou pôr abaixo as paineiras. Falou que elas sujavam as ruas. De nada valeu protestar. Os troncos das árvores gigantes foram levados em tratores, um comboio de mortos.

No Natal, toda esperança renasce. A minha morreu. Abro a palma da mão, sopro, mas nenhuma pluma se eleva ao céu. Meu coração talvez se eleve. É possível. Sempre nos resta esperança.

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Ronaldo Correia de Brito nasceu no Ceará, em 1951. É médico formado pela Universidade Federal de Pernambuco. Foi escritor residente da Universidade da Califórnia em 2007. É autor dos livros de contos Faca e Livro dos homens, Retratos imorais O amor das sombras. Escreveu também os romances Estive lá fora, Dora sem véu Galileia, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura.

 

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