Noel Rosa: tão real quanto imperfeito

Foi-se o tempo em que as biografias escritas para crianças representavam uma espécie de literatura exemplar, em que os personagens biografados eram modelos da genialidade e da perfeição. Escritas a partir de uma perspectiva mais realista, as biografias cada vez mais apresentam os indivíduos como pessoas cheias de dúvidas, complexas, reais – e imperfeitas.

É em suas contradições que o afamado compositor da Vila Isabel é apresentado por Luciana Sandroni em Memórias póstumas de Noel Rosa – uma longa conversa entre Noel e São Pedro num botequim lá do céu. Maior sambista de todos os tempos, o compositor nasceu no começo do século XX, no Rio de Janeiro, e é autor de canções como Com que roupa?, Gago apaixonado e Palpite infeliz, entre muitos outros sucessos.

A história começa com a chegada de Noel Rosa no céu. O boêmio acha que está na festa errada até que encontra São Pedro, que estava à sua espera. Depois de se instalar por lá, beber uma água de coco com o santo e descobrir que a juventude já não canta mais seus sambas, o compositor tem a brilhante ideia de escrever sua biografia.

Coçando a barba, São Pedro dispara: “Não sei, não, Noel... Não me leve a mal, mas a sua vida não é um bom exemplo para os jovens.” Noel rebate dizendo que, veja bem, fez tanta gente feliz. “Os seus sambas são originais e alegraram muita gente, mas a sua vida não é exemplo para ninguém, meu filho. Foi um custo para você entrar no céu. Tivemos várias reuniões. Inúmeras!”, desaprova o santo.

Depois de muita prosa, os dois concordam que é importante, sim, contar a história de Noel Rosa, ainda que ele tenha sido um jovem “irresponsável, libertino e obsceno”, nas palavras do santo. Ao trazer suas memórias da meninice, juventude e vida adulta, o compositor promete que não vai mentir,  “claro que não”, mas confessa omitir em sua história uma coisa aqui, outra ali. São Pedro vira o editor da biografia de Noel Rosa.

A escritora Luciana Sandroni é mestre em escrever romances biográficos. “Faço uma biografia, mas, ao mesmo tempo, é uma ficção”. Esse estilo de escrever biografias surgiu em seu livro Minhas memórias de Lobato, em que a Emília e o Visconde decidem contar a vida de quem os criou com tinta e papel.

Primeiro, pesquisa e lê bastante sobre algum fato histórico – ou sobre um personagem – e depois cria uma história. “É como se a pesquisa fosse uma preparação, um momento mais racional, para depois soltar a imaginação”, afirma a escritora, autora de obras como O Mario que não é de Andrade e Joaquim e Maria – E a estátua de Machado de Assis.

Com essa composição de realidade emoldurada pela imaginação, Luciana destaca dois resultados: enquanto as crianças se interessam mais pela história, pelo lado inventado, os adultos costumam se interessar mais pela informação, por conhecer melhor a vida do artista. Em ambos os casos, os leitores se envolvem com a história paralela àquela que despertou o primeiro interesse. “É claro que [os leitores] também ficam interessados em ler os livros do Mário ou do Machado de Assis e saber mais sobre eles, mas acho que, na hora da leitura, o que interessa é o simples prazer de ler uma história”, complementa.

A autora também nasceu no Rio de Janeiro, cidade “de amor e ventura, que tem mais doçura que uma ilusão”, como definida nos versos de Noel. E foi na infância que teve seu primeiro contato com o sambista da Vila Isabel. “Meus pais sempre ouviam muita música brasileira lá em casa. Ouviam bossa-nova, samba, Chico, Caetano e Elis. Acredito que Conversa de botequim, do Noel e Vadico, deve ter sido a primeira música que ouvi dele. Na adolescência o meu interesse por Noel aumentou, aprendi outras músicas famosas e fiquei muito entusiasmada pelos sambas e marchinhas dessa época”, lembra.

Reunir num livro a biografia e a música de Noel foi sugestão da amiga de colégio da escritora, Maria Clara Barbosa, que é musicista. “Ela me chamou e fiquei animada porque sou fã do Noel, a vida dele é um prato cheio para se criar uma história. A ideia do livro é essa: fazer as crianças, os jovens conhecerem e tocarem as músicas do Noel”. Enquanto Luciana escreveu a história, a musicista preparou os arranjos de alguns dos sambas mais famosos de Noel, que complementaram o livro, prontos para serem tocados. 

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