No centenário de Saramago, dois livros do autor são lançados para crianças

José de Sousa Saramago nasceu em 16 de novembro de 1922, na aldeia de Azinhaga, às margens do rio Almonda, a cerca de cem quilômetros de Lisboa, em uma família de camponeses pobres. É nessas paragens do interior de Portugal que se passam os episódios memoráveis da infância do autor narrados em O silêncio da água e Uma luz inesperada, dois textos publicados pela Companhia das Letrinhas neste ano em que se comemora o centenário de Saramago.

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Na nova edição de O silêncio da água, ilustrado pela artista espanhola Yolanda Mosquera, o narrador relembra uma passagem em que travou um embate com um peixe. O animal, ao morder a isca da vara do garoto, arrancou a isca, o anzol e a linha, deixando o menino perplexo e certo de que se tratava de um animal monstruoso. Então, ele vai correndo à casa da avó, prepara a vara outra vez e volta ao rio para se vingar da besta – que ele imagina ainda estar lá.

Ilustração de Yolanda Mosquera para a nova edição de O silêncio da água

Voltei ao sítio, já o Sol se pusera,

lancei o anzol e esperei.

 

Não creio que exista no mundo

um silêncio mais profundo que

o silêncio da água.

 

Senti-o naquela hora e nunca

mais o esqueci.

 

Lançado pela primeira vez em 2011 como livro ilustrado, O silêncio da água integra o relato autobiográfico de As pequenas memórias, livro em que Saramago revisita histórias de sua infância e juventude.

 

Uma luz inesperada é lançado pela primeira vez no formato de livro ilustrado, com ilustrações do mexicano Armando Fonseca. O texto é uma crônica de A bagagem do viajante e também reconta um episódio marcante da infância do autor, quando foi com um tio vender porcos na feira de uma cidade próxima.

Pastoreando os animais, os dois viajantes passam a noite em um estábulo e, ao ser acordado pelo tio de madrugada para seguir viagem, o garoto vê a lua mais impressionante de sua vida.

Ilustração de Armando Fonseca para Uma luz inesperada

Saltei para o chão e vim ao pátio: na minha frente estava uma lua redonda e enorme, branca, entornando leite sobre a noite e a paisagem. [...] E eu que só tinha 12 anos, como já ficou dito, adivinhei que nunca mais veria outra lua assim. Por isso é que hoje me comovem pouco os luares: tenho um dentro de mim que nada pode vencer.

Representada nos dois lançamentos, a infância pobre do autor foi vivida no interior de Portugal, onde, mesmo depois de a família ter se mudado para Lisboa, Saramago passava longos períodos na aldeia com os avós. Em sua autobiografia no site da Fundação Saramago, o autor contou que, “embora as condições em que vivíamos tivessem melhorado um pouco com a mudança, nunca viríamos a conhecer verdadeiro desafogo económico. Já eu tinha 13 ou 14 anos quando passámos, enfim, a viver numa casa (pequeníssima) só para nós: até aí sempre tínhamos habitado em partes de casa, com outras famílias. Durante todo este tempo, e até à maioridade, foram muitos, e frequentemente prolongados, os períodos em que vivi na aldeia com os meus avós maternos, Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha”.

 

Os dois textos não foram escritos para o público infantil originalmente, mas o encanto e a magia das experiências vividas pela criança e guardadas para sempre na lembrança do adulto garantem duas histórias com potencial para apaixonar todos os públicos, independentemente da idade.

Em uma entrevista de 2020 para o Blog, a presidenta da Fundação Saramago, a jornalista Pilar del Río, disse inclusive que Saramago não escreveu mais para crianças por ter começado a ler livros “adultos” desde cedo. “Costumava defender que não havia problema em uma criança ler um livro sem entendê-lo plenamente. Numa segunda leitura já entenderão mais, assim se forma um leitor. Em linhas gerais, e disse isso muitas vezes, não era partidário da chamada ‘literatura infantil’, embora reconhecesse que era um primeiro passo. O que não queria é que fosse muito durador, porque há muitos livros à espera dos leitores jovens”, disse a jornalista.

O estilo característico do autor, ao mesmo tempo poético e denso, somado à ortografia do português de Portugal, pode parecer um desafio àqueles que ainda não o conhecem tão bem. Mas, já numa segunda leitura, a leitura será mais fluida e até mais cheia de humor. Como Pilar nos avisa, relembrando o que Saramago dizia: “ler requer esforço e que na vida, em geral, é necessário esforçar-se. O esforço de ler será o mais recompensador”.

 

Outros livros para crianças de todas as idades

De fato, o narrador de A maior flor do mundo (Companhia das Letrinhas, 2001), único texto de Saramago que foi de fato escrito para o público infantil, diz que não tem as qualidades necessárias para escrever para crianças. 

 

As histórias para crianças devem ser escritas

com palavras muito simples, porque as

crianças, sendo pequenas, sabem poucas

palavras e não gostam de usá-las complicadas.

Quem me dera saber escrever essas histórias,

mas nunca fui capaz de aprender, e tenho

pena. Além de ser preciso saber escolher as

palavras, faz falta um certo jeito de contar,

uma maneira muito certa e muito explicada,

uma paciência muito grande — e a mim falta-me

pelo menos a paciência, do que peço desculpa.

No livro, o autor faz uma brincadeira metalinguística com os leitores dizendo que, caso tivesse esse talento, escreveria a melhor história de todos os tempos, sobre uma flor que faz uma sombra do tamanho de um carvalho. 

O lagarto, conto que foi publicado em 2016 pela Letrinhas com ilustrações do xilogravurista J. Borges, o narrador também provoca os leitores, afirmando que a história que tem para contar só pode ser de fadas. Ou alguém mais acreditaria que um lagarto gigante poderia aparecer no meio de uma cidade, para depois se transofrmar em rosa e, em seguida, em pomba, se não fosse trabalho de fadas? 

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