'Loba' reinventa Chapeuzinho Vermelho com novas representações do feminino

É quase certo que vocês, leitores, já conheçam a Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Mau, míticos personagens dos contos de fadas que povoam o imaginário popular há séculos. Há também grandes chances de já tê-los visto em versões diversas, cada vez mais abundantes nos livros ilustrados, evidenciando a importância de ampliar o repertório de ideias sobre como o mundo pode ser. Porém, e se a perspectiva do conto fosse colocada na representação do feminino? Mais ainda, e se o enredo se centrasse não somente em torno da protagonista de capa vermelha, mas também do próprio lobo, que, dessa vez, experimenta como é se tornar mulher? 

Loba, de Roberta Malta e Paula Schiavon, é uma conversa íntima com a jornada de crescimento das meninas

Em Loba (Pequena Zahar), escrito por Roberta Malta e ilustrado por Paula Schiavon, o leitor pode acessar o conto de fadas a partir de uma alegoria sobre a transformação da menina em mulher, algo que perpassa a infância de hoje e que pouco aparece nos livros infantojuvenis.

“Existem questões da infância que transcendem o gênero, e outras que acabam se mostrando mais latentes na menina. Há um momento, principalmente nessa fase delicada de transição para a puberdade, em que se inicia a domesticação gradual da menina, para que ela se adeque a padrões femininos já consolidados. Acontece com quase todas. De modo geral, espera-se um comportamento menos atrevido, menos desafiador, mais conciliador. Não é o caso da Chapeuzinho”, explica Paula. Para ela, se crescer pode ser violento e assustador, o livro mostra que existe algo fascinante lá fora.

Sem a desobediência, nem haveria história. Essa errância e o comportamento digressivo levam a menina a correr riscos, e assim algo novo acontece. O encontro com o lobo, que aqui é uma loba, traz desafios, mas traz também uma lição profunda. (Paula Schiavon, ilustradora)

A ilustradora gaúcha Paula Schiavon. / Crédito: Arquivo pessoal.

Por uma outra imagem da mulher

Loba já nasceu como uma celebração da força coletiva das mulheres, pois surgiu de trocas teóricas e artísticas das duas autoras com a pedagoga, escritora e consultora de projetos literários Dani Gutfreund, uma das idealizadoras do Lugar de Ler, em São Paulo. Dani acompanhou o livro desde as primeiras ideias. A partir de uma pesquisa sobre os arquétipos femininos e suas aparições na narrativa clássica, e também de uma exploração prática dos papéis da palavra e da imagem no livro ilustrado, resulta uma obra para refletir sobre a potência das histórias em nossas percepções de mundo. Isto é algo que se reflete em todos os aspectos do livro, sobretudo em sua visualidade silenciosa.

A narrativa visual é um desafio, no qual é preciso escolher uma dentre várias possibilidades de narrar. Quando se trata de um livro-álbum, existe uma construção conjunta da imagem e da palavra, um equilíbrio que possibilita que ambas brilhem no seu papel. A imagem vem para trazer outra experiência, e não simplesmente repisar o que a palavra já está dando conta. (Paula Schiavon, ilustradora)

A escritora capixaba Roberta Malta pesquisou fontes diversas para compor a Loba, dos contos clássicos às teorias modernas. Crédito: Arquivo pessoal

Meninas que correm com as lobas

Conhecida por trabalhar, na psicanálise, os traumas do pós-Segunda Guerra e por analisar o impacto dos mitos na representação da mulher, a pesquisadora e poeta norte-americana Clarissa Pinkola Estés é uma referência nos estudos de arquétipos com abordagem junguiana. Ao investigar como as narrativas são um dos espelhos possíveis de como nos entendemos enquanto sujeitos, seu trabalho tem sido até hoje um radar para mulheres em diversas áreas de atuação. Afinal, se a Chapeuzinho original é punida por ser desobediente e entrar na floresta perigosa, a ideia de adequação à norma consolida no imaginário das crianças que arriscar-se é errado. 

Já em Loba, o cuidado é reinventar o caminho contrário: ao caminhar sozinha pela mata, a menina se encontra não só com seu próprio amadurecimento e sua autonomia, mas também com a importância de reconhecer os desafios e as belezas da jornada, assim como acontece na vida. “O vermelho é a cor do sangue, da fertilidade, da menstruação, que também pode ser algo assustador de início. Por isso, fiz com que o vermelho gradualmente tomasse conta do vestido da menina, até ele se tornar totalmente vermelho, quando ela finalmente se encontra com aquilo que teme: sua própria natureza, a loba”, compartilha a ilustradora.

Além disso, o livro traz para o universo infantil muitas das ideias pautadas no debate feminista contemporâneo, como a emancipação dos sistemas opressores contra a mulher e, principalmente, o embate entre a pressão externa por adequação e o impulso interno pelo instinto. 

Acho que todas nós tememos muito o erro (na infância, no colégio, na vida), o que pode nos deixar naquele lugar já conhecido. Mas a criação só acontece quando ousamos, quando aceitamos o risco de errar. Acredito que, nas meninas, esse comportamento é especialmente desestimulado. (Paula Schiavon, ilustradora)

Loba é um livro que parece conter um desejo, o de que as meninas de hoje não precisem mais se culpabilizar por não serem comportadas, dóceis e “boazinhas” o suficiente. Uma história atemporal e ao mesmo tempo contemporânea, necessária para a criança de hoje: uma loba nada má e uma garota forte que confia em si mesma podem dar as mãos para meninos e meninas em seus percursos de crescimento.

O Blog da Letrinhas bateu um papo com a autora do texto para saber mais sobre a pesquisa que originou o livro, e aprofundar a relação entre os ideais de feminino concatenados no livro e a infância de hoje. 

Ilustração de Loba mostra a menina que representa a Chapeuzinho Vermelho contemplando a floresta

 

Confira a entrevista completa com Roberta Malta:

Como leitora, quando e como foi seu contato pessoal com a história da Chapeuzinho Vermelho? E como ele te atravessou como escritora até desembocar neste livro?

Roberta Malta – Meu primeiro contato com Chapeuzinho Vermelho se deu na oralidade, por meio das professoras da educação infantil. Na infância, eu só tive um livro, um compilado de contos de fadas adaptados. 

Já adulta, quando comecei a estudar o livro ilustrado, fui naturalmente me encantando pelas muitas versões dessa narrativa; e no processo de pesquisa para Loba eu via Chapeuzinho em todo lugar, até nos livros que não eram diretamente sobre essa personagem. O que sempre me chamou mais atenção foram os desvios. 

Na versão dos Grimm, o lobo fala: “Veja como são belas as flores ao seu redor”. Por que olhar as flores, desobedecer, precisa terminar com punição? (Roberta Malta, escritora)

Sempre tive uma fixação por essas flores, pela menina que se maravilha pelo caminho, tanto que em Loba é uma flor vermelha que atrai a protagonista para o alto da árvore, de onde ela vê o mundo de outra perspectiva. 

 

O livro já começa com uma inquietação, quando a menina diz que sua casa parece muito pequena para ela. Você conecta esse sentimento individual de inadequação à vivência coletiva das mulheres?

Roberta Malta – Eu vim do interior, nasci em uma pequena cidade do Espírito Santo, e sempre tive essa vontade de desbravar o mundo. O lugar onde nasci me parecia pequeno, como se realmente eu não coubesse ali. Hoje, vejo que de fato havia bem pouco espaço para uma mulher viver em liberdade.

Demorei muito para entender que a inadequação que sentia vinha de algo coletivo e estrutural. Apesar de acreditar também que sentir-se pequeno em um lugar é um sintoma da necessidade de expansão. O livro é sobre um rito de crescimento. (Roberta Malta, escritora)

As representações do feminino podem ser acessadas por muitas linguagens diferentes, como a psicanálise, a literatura, a História. Em quais fontes você bebeu para criar essa história e como foi a pesquisa? 

Roberta Malta – A história em sua primeira versão nasceu de uma maneira intuitiva. Eu tinha vontade de falar dos desvios, da flor vermelha, de um lobo que não fosse só perigo, mas também acolhimento e força interior. 

Eu queria incentivar a vontade de se aventurar pela estrada, que o necessário medo dos riscos não fosse paralisante. E também queria muito repensar a desobediência feminina, e a história de Eva e da esposa de Barba Azul me marcaram muito também. 

O tema do feminino e da mulher está comigo diariamente, fiz muitos trabalhos terapêuticos em grupo para mulheres, minhas principais leituras são escritas por mulheres, é quase inevitável. Mas uma das principais pesquisas que fiz foi em torno da própria história de Chapeuzinho, suas tantas versões, camadas e significados. 

 

Todo o trabalho psicanalítico da Clarissa Pinkola Estés e o clássico Mulheres que correm com os lobos foram uma referência pra você? Pinkola escreveu que “os lobos saudáveis e as mulheres saudáveis têm certas características psíquicas em comum: percepção aguçada, espírito brincalhão e uma elevada capacidade para a devoção”. Esse pensamento conversa com o Loba?

Roberta Malta – Com certeza, Clarissa e seu Mulheres que correm com os lobos fazem parte da minha formação e influenciaram o nascimento do livro. É justamente esse espírito brincalhão que o livro convida leitoras e leitores a não perder. A mãe da menina em sua devoção cuida da avó ao pedir que a filha busque flores para ela, cuida da menina ao pedir que tome cuidado na floresta. E a menina com sua percepção e espírito de aventura consegue regular riscos e oportunidades, e assim experimentar a vida. 

Ilustração de Chapeuzinho Vermelho no livro Loba, de Roberta Malta e Paula Schiavon, que traz uma nova representação do feminino para a narrativa

 

Uma das cenas mais marcantes do livro é o encontro entre os personagens, quando a imagem da menina aparece refletida nos olhos do bicho. Ali, o mítico Lobo Mau aparece como um arquétipo da mulher selvagem e dos instintos femininos. Como você articulou essas relações?

Roberta Malta – Nossa intenção sempre foi trazer o lado feminno do lobo. O primeiro título da história foi Mãe Loba, depois O abraço. Nós queríamos que a menina encontrasse sua própria loba interior para guiar seus instintos nas aventuras pela estrada afora. Mas sabemos que o imaginário do lobo, principalmente em Chapeuzinho, é muito forte.

Fizemos esse encontro, então, de forma silenciosa e cadenciada, devagar. Assim como é também na versão mais tradicional, em que o lobo não devora a Chapeuzinho de uma vez. O clímax é vagarosamente construído no diálogo da cama. No fim, acho que fica para o leitor. Cada um vai dizer quem é a loba do título e da ilustração.  

 

O livro foi criado a quatro mãos ou houve uma articulação entre linguagens de forma mais autônoma?

Roberta Malta – Com certeza foi criado a quatro mãos. Teve ainda as duas mãos da Dani Gutfreund, que acompanhou o projeto, além de diversas mãos de amigas em quem confio e com quem preciso trocar enquanto estou criando. Foram várias fases também. Em um primeiro momento, tínhamos só palavras. Em outro, tivemos praticamente só ilustrações. O encontro com o tom do livro foi feito escolha a escolha, e com a participação de todas em cada uma delas.

 

A presença das cores é um elemento narrativo de grande importância no livro, tanto nas roupas, quanto nas flores e nas leituras subjetivas de uma cena em que a menina escala a árvore e questiona consigo mesma: “até onde vai o caminho?”. Pode comentar sobre esse aspecto?

Roberta Malta – O vermelho é a referência mais direta à Chapeuzinho Vermelho, à sexualidade e à menstruação, que estão intimamente relacionadas aos ritos de crescimento de meninas, da infância para a adolescência. 

O azul está ligado à noite. Nós queríamos muito que tivesse a presença da lua, também como símbolo do feminino, da ciclicidade. Essa circularidade também está no retorno da menina à casa, o que não acontece na história original. É a originalidade, a exuberância, a novidade do vermelho que a atraem e a convidam a subir na árvore.

 

Os silêncios narrativos são também um elemento que se destaca no livro, há poucas palavras escritas e muitas sugestionadas, o que funciona como uma metáfora instigante quando falamos na representação da mulher. Como foi o processo do seu texto inicial até a versão final, houve muitas edições até encontrar a “voz” da loba?

Roberta Malta – Sim, muitas e muitas versões! Essa narrativa começou como um conto de três páginas escritas. Depois, em meu processo de apaixonamento pelos livros ilustrados, comecei sozinha mesmo a reduzir as palavras para deixar espaço para a ilustração. Quando comecei o acompanhamento com a Dani, percebi que boa parte da história eram fatos narrativos que as ilustrações poderiam contar. Fizemos um primeiro boneco em que praticamente não havia palavras, e eu usava as palavras para roteirizar a ilustração. 

Hoje eu entendo que esse é um espaço que um escritor de livros ilustrados pode ocupar. É possível imaginar a história em cenas que ocupam as páginas do livro. É um outro jeito de criar, algo bem próximo do roteiro do cinema. 

Quando a Paula chegou, o livro foi silenciando ainda mais. Essa é uma característica do seu trabalho, aprendi muito com ela o valor de deixar espaço para o leitor. E também é muito difícil falar diante da beleza do que ela ilustra. Foi desafiador! Eu precisei encontrar novas palavras, depois de o livro estar ilustrado. 

Um exemplo é a cena final. Na primeira versão, tinha uma conversa entre a menina, a mãe e avó. A Paula entregou aquele abraço e todas tivemos a certeza que o livro tinha que terminar ali, nada mais precisava ser dito. Deixamos apenas como vinheta uma imagem que eu queria muito, que é a da menina com capuz de loba. 

 

Na dedicatória do livro, tanto você quanto a Paula o endereçam às crianças, especificamente as meninas, em um gesto bonito de interlocução. Para você, como a obra dialoga com os anseios da infância hoje, e qual a importância de reinventar narrativas clássicas?

Roberta Malta – Os contos de fadas são histórias anônimas, coletivas, populares. Como tudo o que vem da oralidade, há uma imensa liberdade em se recontar. Quem conta um conto aumenta um ponto, e é isso mesmo que acontece. Há versões em latim da história de uma menina encontrada entre lobos usando uma capa vermelha, isso séculos antes de Grimm. 

Eu acredito que a diversidade de versões é bem-vinda, que não há uma única verdadeira ou correta. Cada versão traz o espelho de seu tempo, e, como em muitas narrativas clássicas, há também uma base que parece ser atemporal, talvez por isso o fascínio por essas histórias se mantenha por tanto tempo. (Roberta Malta, escritora)

Percebo que no caso das mulheres há sim uma necessidade de novos lugares, pontos de vista, novos protagonismos e representatividades. As meninas precisam ser vistas em lugares de coragem, autonomia, confiança, acolhimento, ancestralidade e sororidade. Mas isso não tira o valor de versões antigas. O medo, o Lobo Mau, os perigos do caminho, tudo isso continua existindo. Essa nova Chapeuzinho é mais uma para compor esse diálogo que acontece há pelo menos um milênio. 

 

O feminino intergeracional é narrado verbal e visualmente no livro, em pequenos detalhes como a matrioska enfeitando a casa, os retratos na parede, e em grandes questões, como a relação da menina com a mãe e a avó. Como você percebe a importância de conexão com essa ancestralidade feminina hoje em dia?

Roberta Malta – É muito importante pensar a mulher como um coletivo para além do espaço contemporâneo, que inclua também os muitos tempos antes de nós, tudo o que já foi vivido, por tantos corpos, tantas narrativas. 

Ser mulher é algo vivo, nômade, metamórfico, não é cristalizado ou fixo. Cada uma tem uma experiência, mas o importante é pensar que temos umas às outras. (Roberta Malta, escritora)

 

(Texto de Renata Penzani)

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