Leituras imperdíveis

 

Por Blandina Franco

Quando eu era criança, mal dezembro chegava, já estava pronta para adivinhar o que eram todos os presentes que aos poucos apareciam debaixo da árvore de Natal montada na sala de jantar da nossa casa, em um canto entre a mesa redonda que minha mãe arrumava usando um chalé de seda preta todo bordado em cores vivas comprado na Espanha em uma viagem feita com o meu pai e um relógio de pé que "batia" de hora em hora e que tinha na sua base um compartimento secreto, uma tampa de madeira que podia ser tirada e revelava o lugar preferido para os coelhos esconderem os ovos na Páscoa.

A nossa sala de jantar era um espaço reservado para grandes acontecimentos. Ela era de jantar e também de visitas, mas a gente quase nunca jantava ali. A sala de jantar era onde meu pai recebia os amigos, onde minha mãe servia café para as visitas, onde as crianças não podiam colocar o pé no sofá, nem deitar, nem comer bolo porque encheriam os vãos entre as almofadas de migalhas – e também porque sempre limpam a mão suja de chocolate no braço do sofá!

 

Ilustração de José Carlos Lollo

 

Mas não era disso que eu queria falar! Queria falar sobre as leituras imperdíveis dos Natais da minha infância. Porém a minha cabeça funciona de um jeito muito particular e, para falar de leitura relacionada ao Natal, preciso lembrar do Natal inteiro. Preciso lembrar da sensação de apertar os presentes tentando descobrir o que era cada um deles. "Este, com certeza, é um pijama da tia Mãinha."

A tia Mãinha costurava pijamas para todos os sobrinhos netos, e se a gente pensar como adulto, e como criança também, não deve existir no mundo um presente menos desejado do que um pijama. Então como explicar que esse seja o presente que eu me lembro em primeiro lugar quando lembro de Natal e seja também o presente mais me enche de amor? Eram pijamas de flanela, quase sempre com estampa de florzinhas, abotoados e de mangas cumpridas.

Já os presentes da minha mãe eram sempre divertidos e vinham embrulhados em jornal. Minha mãe era assim, ela sempre acertava os presentes e fazia lindos pacotes com laços coloridos, com dobraduras, mas usava o jornal como papel de presente. E ficavam presentes lindos. Uma vez ela me deu uma Suzi, e a Suzi tinha uma peruca. Uma vez ela me deu uma malinha vermelha que fechava com uma presilha e dentro da malinha tinha o enxoval inteiro para uma boneca que eu amava. Uma vez ela me deu um brinquedo que eu não lembro muito bem o que era, mas lembro que era alguma coisa feita de areia.

Agora, pensando no Natal, descubro que não tenho lembrança de ganhar um livro de presente e isso é muito estranho, porque imediatamente depois do Natal minha mãe colocava os filhos e quantos primos coubessem no seu carro, um Corcel champanhe de capota de vinil preto, e dirigia 400 quilômetros até São Joaquim da Barra, cidade onde minha avó morava em uma fazenda, e passávamos mais de um mês de férias por lá. Em todos os dias dessas férias, eu lia.

E finalmente eu cheguei às minhas lembranças de leituras imperdíveis. Eu lia muito depois do Natal. Lia os quadrinhos do Tintim, Asterix e Lucky Luke que eram do meu irmão. Devorava todos os livros da Agatha Christie e da Mary Westmacott, o que dá na mesma e que eram da minha irmã. Li muitas vezes os livros da Saga de Angélica, a Marquesa dos Anjos de Anne e Serge Golon, que é uma aventura flolhetinesca daquelas cheias de bobagens deliciosas, mocinhas sendo sequestradas por um homem misterioso que tem uma cicatriz no rosto a quem ela odeia, mas que logicamente vai amar desesperadamente no final do livro depois que ele salva-la dos piratas sanguinários que pretendiam vendê-la como escrava branca para colorir no meio do deserto. Esses acho que eram da minha tia Blandina. Lia livros de "o que é, o que é?", que não tinham dono definido.

Lia tudo e qualquer coisa que caísse em minhas mãos. Afinal, estava em uma fazenda e a única regra era que, quando estivesse perto de escurecer, eu tinha que descer da cerca de arame farpado onde estava brincando e voltar pra casa, tomar banho para a minha avó saber quem era aquela pessoa debaixo da camada de terra e, depois, permanecer dentro de casa até a hora do jantar.

E nessa hora, em uma casa sem televisão, tudo o que existia era o barulho de grilos, uma noite escura com um monte de vagalumes prontos para serem contados e um morcego ou outro que atravessava a casa voando de medo da Nair, a cozinheira que corria atrás deles com uma vassoura. E livros.

Eu, como qualquer criança, amava os grilos, os vagalumes e, até posso dizer, os morcegos. Mas o que eu mais amava fazer depois de ter levantado às 6 horas da manhã e brincado o dia inteiro era deitar na minha cama usando o pijama que a tia Mãinha me deu de Natal e ler um livro antes de dormir.

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Blandina Franco, em parceria com o ilustrador José Carlos Lollo, é autora de Quem soltou o Pum? (2010), Grande pequeno (2011), O coiso estranho (2014) e Eu não acho de jeito nenhum (2017), entre outros.

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