Férias de verão no Cine Jangada

 

Por Flavio de Souza

Com certeza absoluta os melhores momentos da minha infância se passaram em Itanhaém, cidade do litoral sul de São Paulo, que fica entre Peruíbe e Mongaguá. Era lá que minha família – com exceção do meu pai, que ficava em São Paulo, trabalhando, e descia a serra toda sexta de noite – passava todo o verão, retornando só na segunda-feira após o Carnaval.

 

 

Nesta foto estão, da esquerda para a direita: Alicinha, Rosana, eu, Raquel e Eni, quatro primas. Minha irmã Lia não está ali porque provavelmente está na nossa casa, preparando-se para o passeio vespertino. Fosse matutino, estaria todo mundo em trajes de banho.

Estamos prontos para ir de trenzinho – dois vagões com rodas puxados por um tipo de trator – para o centro, onde ficava o lugar mais importante da minha vida: o cinema. Para as minhas primas e minha irmã caçula, esse programa era opcional. Para mim, era religioso: eu tinha um encontro com os deuses cinematográficos absolutamente todo dia, de segunda a domingo.

O caso é que todo dia passava um filme inédito. E na matinê passava o mesmo filme que tinha passado na noite anterior, que geralmente era proibido para menores de 14 ou 18 anos. E na tarde seguinte, era liberado para quem quisesse comprar ingresso e entrar.

Essas cerimônias aconteceram nos anos 60, e foi numa dessas matinês que eu vi Os pássaros e Marnie, do Hitchcock, e os primeiros filmes do James Bond e os faroestes italianos, todos proibidos para menores, e alguns dos mais inesquecíveis, por motivos diferentes.

Mas o mais aguardado foi Doutor Jivago, porque eu tinha o LP com a trilha sonora muito antes desta noite incrível em que vi e me encantei e me decepcionei na mesma medida porque me surpreendeu e não correspondeu ao filme que fui inventando na minha cabeça nas centenas e centenas de vezes – literalmente – em que escutei o LP.

Foi por não poder entrar para ver esses filmes em São Paulo – nos longos meses que separavam, com exceção de alguns dias de julho, o mundo bizarro e o paraíso, ou seja, as férias de verão – que eu li uma pilha de livros, incluindo o já citado Doutor Jivago, de Boris Pasternak, Histórias Extraordinárias, de Edgar Allan Poe, O colecionador, de John Fowles, Moscou contra 007, de Ian Fleming, e Macunaíma, de Mário de Andrade – aos trancos e barrancos, claro, mas maravilhado.

Mais tarde eu passei a fazer parte da turma dos que acham que o-livro-é-muito-melhor-que-o-filme, mas durante vários anos, várias férias, várias tardes do fim da minha infância eu viajei numa poltrona do Cine Jangada e nas páginas cheias de letras.

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Flavio de Souza é ator, escritor e roteirista. Pela Companhia das Letrinhas, ele já publicou Antes e depois (2015), Nove Chapeuzinhos (2007), Que história é essa? 3 (2009) e O livro do ator (2001), entre outros.

 

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