Como mediar temas difíceis com as crianças e os adolescentes?
Se você convive com crianças ou jovens, muito provavelmente já se perguntou qual é a melhor maneira de abordar temas difíceis e de conversar sobre eles com os mais novos. E os últimos anos trouxeram, não apenas para o noticiário, mas para dentro de casa, uma gama de assuntos bastante indigestos. A pandemia foi a responsável por uma enorme parte desses assuntos, trazendo o medo, a morte e o luto para o cotidiano das famílias. Mas também tem tragédias relacionadas à mudanças climáticas, como as enchentes que assolaram o Brasil neste ano, e até a possibilidade de uma guerra mundial voltou a ser discutida.
Mas como falar sobre tudo isso com as crianças e os adolescentes sem causar mais ansiedade nem agir como se nada estivesse acontecendo? O Blog conversou com a jornalista Paula Desgualdo, uma das integrantes do Coletivo Sabichinho, que acaba de lançar o livro A morte da lagarta pela Companhia das Letrinhas. Para ela, esses assuntos são mesmo difíceis, inclusive - e talvez principalmente - para os adultos.
Paula acredita que o mais importante, ao começar esse tipo deconversa, é ter a sensibilidade de escutar e tentar entender a criança antes de trazer muitas informações. "Às vezes a gente quer falar, quer trazer demais, e eu acho que tem que ter o tempo da fala, o tempo da troca de informação, mas também o tempo do silêncio, principalmente quando o assunto é a morte", diz.
O Coletivo Sabichinho é formado pela jornalista, por André Rodrigues, Larissa Ribeiro e Pedro Markun, e já lançou também os livros Eleição dos bichos e Quem manda aqui?, que tratam de política de maneira lúdica, direta e sensível.
Os livros criados pelo Coletivo tratam de temas a princípio difíceis de falar com as crianças. Por que a escolha desses temas?
Paula Desgualdo: Não é que a gente escolheu esses temas porque eles são difíceis não é mas claramente é a gente como coletivo tem um interesse por temas complexos, digamos assim, e nos primeiros dois livros a gente falou sobre assuntos relacionados à política e a gente começou o nosso primeiro livro, Quem manda aqui?, começou com essa ideia de escrever um livro sobre política, de trazer esse tema que era algo que a gente queria explorar e trabalhar. A morte veio na esteira da pandemia mesmo, não foi algo que a gente tivesse é pensado ou trabalhado antes. São temas desafiadores não só para as crianças, mas de uma maneira geral são temas universais também, que estão na vida de todos nós e acho que isso nos guia e justifica essas escolhas, além dos contextos específicos. No caso do A morte da lagarta foi a pandemia, e antes disso a política, que foi o motivo da gente se juntar, na verdade, e começar a escrever sobre política. É um tema que o Pedro trabalhava bastante e aí a gente chamou a Larissa e o André e tudo começou.
Os próprios adultos têm dificuldade de falar sobre morte e luto, por exemplo. Você acredita que isso pode acontecer por serem temas tratados como tabus em suas próprias infâncias?
Eu acredito que sim, eu entendo que um tabu é tabu para crianças e para adultos. São temas que a gente tem alguma dificuldade em lidar e aí a gente não fala sobre. E é delicado, acho que por isso também é um tema que se evita. Os temas que são tabus envolvem essas complexidades; no caso do luto, envolve as nossas emoções de uma maneira que nem sempre fica claro pra gente, como adulto, então como falar sobre isso é como uma criança? Acho que essa é sempre uma questão que se coloca dentro das relações familiares. Como a gente fala isso? De maneira metafórica, figurada? A gente traz crenças também? Aí vai envolver o que você acredita que aconteceu com aquela pessoa ou com aquele corpo ou com aquela alma, com o que quer que seja, para você também apresentar para a criança, então acho que por conta de tudo isso a gente tem essa dificuldade de falar sobre.
Na sua opinião, o que uma abordagem sobre esses temas com as crianças poderia conter, uma vez que não há uma regra para fazer isso?
Eu acho que a abordagem é vai variar muito com cada criança individualmente, com a idade e o contexto dela. No caso do luto, depende de quem ela perdeu, qual relação ela tinha com essa pessoa ou esse animal. Eu acho que tudo isso precisa ser levado em conta para uma abordagem sobre esses temas. Não sou nenhuma especialista, estou falando desde o lugar de quem escreve e tem uma filha que acabou de nascer, a partir da minha própria experiência, mas eu acho que sempre abrir para a escuta é a primeira coisa que a gente tem que fazer e então trazer o tema, é algo que a gente já propunha desde os livros anteriores. Às vezes abordar o tema não quer dizer descarregar um monte de informação em cima da criança sobre as possibilidades do luto, da morte, mas sentir o que pode estar acontecendo com ela e antes de tudo ouvir. Que essa criança possa ser primeiro escutada e acolhida. Eu acho que a primeira abordagem passa um pouco sobre a escuta e sobre as perguntas. A gente gosta bastante de trazer perguntas, de manter a possibilidade da abertura e não de fechar, sempre ampliar e expandir para o que possa vir da criança e não trazer algo pronto e fechado. E acho que o silêncio também, porque às vezes a gente quer falar, quer trazer demais e eu acho que tem que ter o tempo da fala, o tempo da troca de informação e o tempo do silêncio também, principalmente quando o assunto é a morte.
Mas, em relação ao livro, a gente mesmo não saberia é ainda e não tem muito claro de que forma trabalhar isso com as crianças ou quais dinâmicas seriam possíveis. A gente vem de um trabalho que vem sempre sendo feito coletivamente com grupos de crianças em dinâmicas e oficinas e, nesse caso, isso não aconteceu obviamente por causa da pandemia, mas também não é que a gente tivesse claro que tipo de dinâmica seria essa. Então é um tema que para a gente também ainda traz questionamentos sobre como explorar e abordar. Por isso eu acho que conta muito a sensibilidade de poder observar, olhar e escutar antes de tudo, e daí sim trazer alguma informação.
A criação de A morte da lagarta aconteceu por conta da pandemia então?
Aconteceu por conta da pandemia mesmo. A gente vinha escrevendo um livro sobre outro tema, que era sobre a relação da criança com a cidade, e ele foi engavetado justamente por causa da pandemia. Aí logo no início, quando houve o primeiro lockdown, a gente começou a pensar nesse tema da morte, que já estava próximo. Ainda não era tão presente e tão real ainda, mas já estava ficando claro por causa da realidade que o mundo estava vivendo e a gente sabia que aquilo estava chegando aqui e que, em breve, todos nós temos teríamos que lidar com o luto de uma maneira coletiva.
Pode contar um pouco sobre a escolha do animal que estaria morto no livro? Há uma homenagem nessa escolha, certo?
O animal que a gente escolheu, a lagarta, tem uma história do Pedro. Ele tinha se mudado para um sítio em Mairiporã, próximo a São Paulo, e uma das crianças dele ficou tocada por ver uma lagarta morta na escada da casa e perguntou se não iam fazer nada a respeito. E aí eles fizeram um pequeno ritual, enterraram essa lagarta no jardim e falaram algumas coisas. Quando o Pedro contou isso, a gente decidiu trazer isso para a história e usar esse episódio como inspiração. E, claro, a lagarta simbolicamente traz essa questão da transformação, da transmutação da morte e do renascimento, que eu acho que casou muito bem com uma abordagem delicada sobre a morte. Porque sempre que a gente fala de morte fala de nascimento e renascimento também. Então eu acho que essa imagem da lagarta que vira borboleta tem essa associação imediata para a maioria das pessoas. Além disso, durante a pandemia e no período em que a gente estava escrevendo o livro morreu, já aos 91 anos, O Eric Carle, um autor bem conhecido de clássicos da literatura para crianças, que todos nós gostamos, e que escreveu o livro Uma lagarta muito comilona, então veio também essa ideia de fazer uma homenagem, apesar de que a escolha já estava feita, mas a gente trouxe também essa informação para o livro. A lápide da lagarta traz a primeira frase do livro adaptada para a nossa história.
Como foi o trabalho artístico de vocês para evitar que os 3 livros acabassem se tornando instrumentos para falar sobre isso ou aquilo, algo que é comum de se ver na literatura para crianças?
Eu acho isso bem importante porque é legal lembrar antes que o livro é um livro, é o livro pelo livro. Ele é uma experiência e, para ser um bom livro, não precisa necessariamente servir para falar sobre algum tema. Ele precisa ser uma experiência que expande de alguma forma o repertório do leitor ou que emociona ou que toca de alguma forma ou que informa também. Mas eu acho que essa lembrança é sempre essencial para que a gente não transforme o livro, especialmente os livros que a gente faz, em algo instrumental ou utilitário, que você vai pegar, como adulto, e resolver uma questão que você não está conseguindo ou ter uma fórmula para lidar com um tema que você não sabe como lidar, algo pronto.
Ao contrário, a gente procura sempre abrir, como eu falei, para a pergunta. A gente busca sempre muito mais os questionamentos do que respostas, e nesse caso não é diferente. Acho que uma das duplas mais importantes do livro traz os vários insetos com suas questões e possibilidades sobre o que eles acreditam que acontece quando a gente morre. Essa é uma forma de escolha e tem a ver com isso. Da mesma forma, todas as páginas de silêncio trazem isso como estratégia, embora a gente tenha, por exemplo, no Quem manda aqui? um subtítulo, que é “um livro sobre política para crianças”. Mas ali a gente queria explicitar que o tema era aquele estivesse bem claro desde o início. Mas sempre com esse cuidado para o livro não virar um manual para qualquer coisa, que você compra para resolver algo ou lidar com algo. Sempre tendo em mente essa experiência anterior de ser um livro que traz questionamentos, que aguça a sensibilidade, que faz é pensar, faz sentir, faz rir ou o que quer que caiba na experiência de leitura de cada um.