Biblioteca não é parque de diversões

Biblioteca não é parque de diversões, não é lugar onde se joga xadrez ou apropriado para fazer tricô, não é espaço apenas para ouvir uma história. É negando o que se faz muito em bibliotecas pelo país, nas escolares, comunitárias ou públicas, que a pesquisadora mineira Fabíola Farias questiona o que é essa instituição que há séculos guarda a cultura escrita.

Um dos desafios da biblioteca é apresentar para a criança o mundo escrito, em narrativas distintas. E, para isso, "não basta chegar lá e contar uma história”, afirma a coordenadora da rede de bibliotecas e projetos para a promoção da leitura da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte.

Para definir que lugar é esse, ela lembrou um conto de Ítalo Calvino, Um general na biblioteca, que fala do poder subversivo dos livros. Na história, o severo general Fedina e outros oficiais se trancaram numa manhã chuvosa numa biblioteca, a mando do Estado-maior da Panduria, com a tarefa de identificar e suprimir obras com opiniões contra o “prestígio militar”. Com um carimbo, classificava os livros em adequados ou não. Por lá ficou um bom tempo. Leu tudo e tanto que saiu da missão questionando a própria censura.

Na contramão da biblioteca de Calvino, “a biblioteca escolar que temos hoje é um espaço de conformação. Ela não reconhece as contradições da formação do poder, por exemplo. Os meninos vão à biblioteca, lá leem uma história para eles, o que apoia um projeto pedagógico que reafirma o que o professor falou na sala de aula. E pronto”, questiona Fabíola, doutoranda em Ciência da Informação pela UFMG e leitora-votante da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.

Para a pesquisadora, as bibliotecas têm falhado ao trabalhar só a formação do leitor literário, ou seja, com a perspectiva de apenas fomentar a história e não a importância da produção do conhecimento que o local abarca. “É fundamental ensinar o que significa ler e escrever, qual a importância da cultura escrita”, diz Fabíola, que promove com sua equipe uma série de ações de formação de leitores em 21 bibliotecas públicas, além de ações com bibliotecas móveis em instituições de acolhimento e ainda festivais, seminários e oficinas para profissionais que atuam com infância e leitura.

Muitas turmas de crianças das escolas da capital mineira visitam diariamente a Biblioteca Pública Infantil e Juvenil de Belo Horizonte, a mais antiga da rede, com 25 anos, e a primeira especializada em literatura infantil. “A gente apresenta a biblioteca como instituição, mostra como o conhecimento está organizado nas disciplinas e como essas disciplinas se perpassam”, conta.

O primeiro desafio é fazer com que as crianças compreendam o que é a escrita, para que serve ler. “Destacamos a biblioteca como esse lugar que acolhe a cultura escrita, para a escrita ser uma entidade, não sagrada, mas para ela ser compreendida como esse lugar de produção de conhecimento, de registro de vozes até então desconsideradas”, completa.

Essa falha em colocar a biblioteca como um lugar do entretenimento nasce da ansiedade da instituição em atrair público. No mestrado, a pesquisadora analisou um documento do Sistema Nacional de Bibliotecas e ficou estarrecida com as com recomendações (“da ordem do absurdo”) da instituição que dialoga com os espaços públicos de leitura no país. Na lista, estavam orientações como “promova um campeonato de xadrez”, “recomende que os adultos assistam a Globo rural”, “proponha oficinas de tricô e bordado para as mulheres”. “Há uma total fragilização da compreensão da própria cultura, do que é o processo de educação formal, do que é conhecimento.”

No caso das bibliotecas escolares, aos milhares pelo país, Fabíola destaca que sua função vai além daquela usual de sustentar, ampliar e potencializar o projeto pedagógico do currículo da escola. “É fundamental ensinar a criança a buscar fontes diferentes de conhecimento, extrapolando a função da leitura literária. O que professores fazem muitas vezes é juntar os livros, contar uma história e acredita-se que está formado o leitor literário.”

Se a biblioteca não é um “parque de diversão”, como afirma a pesquisadora, o espaço pode ser sim um lugar para as férias, pois a cultura escrita não deve estar só circunscrita ao período escolar. Com uma programação convidativa, a equipe da rede municipal de BH se prepara para receber as famílias durante o mês de janeiro – e, claro, não só nessa época.

Outras ações são feitas para estimular o fortalecimento da leitura entre as famílias, como a criação da cartilha As crianças e os livros, projeto da  Fundação Municipal de Cultura, em parceria com o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. Distribuído gratuitamente em diversos pontos da capital mineira, o livreto faz parte do projeto Ler em família: leitura e literatura na primeira infância. Sim, o contato com os livros necessita ocorrer já nos primeiros anos de vida.

A leitura no contexto familiar, além de fortalecer os vínculos entre pais e filhos, ajuda a criança a ter autonomia na leitura – ao ler uma receita de bolo ou uma bula de remédio, por exemplo. A família pode mostrar para a criança que a leitura oferece acesso ao conhecimento e à informação.

Ela sugere que pais e filhos leiam juntos. “A leitura em família é uma suspensão do tempo produtivo. Suspensão do momento em que a mãe manda o menino arrumar o quarto. Suspensão do tempo para deixar um pouco a tarefa do trabalho doméstico de lado para ser um momento entorno de uma história, de um poema, de uma narrativa de imagens ou de algo que pare o tempo de produção, que faça a pessoa sair do cotidiano, da rotina. E única coisa que oferecemos mesmo ao outro é o nosso tempo, não é?”

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