Afinal, o que é arte?

O que você imagina, quando pensa na palavra arte? Uma exposição de quadros ou esculturas em um museu famoso? Uma pintura abstrata pendurada em uma galeria? A Mona Lisa ou o teto da Capela Sistina? Certo, tudo isso é arte. Mas não só isso. Uma ilustração de um livro infantil, um grafite estampado em um muro, uma roupa e até um móvel ou a roda de uma bicicleta, como você vai ver mais adiante, podem ser arte também. 

Mas quem define o que é ou não arte? O que diferencia uma roda de bicicleta comum de uma roda de bicicleta que ganha destaque em um museu? Em A incrível pintura de Felix Clousseau (Pequena Zahar), de Jon Agee, o quadro de um pato ganha espaço no Palácio Real de Paris. E os patronos de arte se perguntam, em pânico, o que ele faz ali. A obra é de autoria de um completo desconhecido, chamado Felix Clousseau. A surpresa acontece quando o pato que está no quadro grasna e transforma o quadro de Clousseau em um estrondoso sucesso da noite para o dia. No desenrolar da narrativa, outras pinturas do artista ganham vida e tudo se transforma em uma grande confusão - que termina de um jeito bem inusitado e levanta várias reflexões sobre quais são os limites da arte o que define o valor de uma obra.

Esse debate pode ajudar a aproximar a arte do cotidiano na medida em que amplia nosso olhar para as possibilidades de fruir de experiências artísticas além dos limites de espaços culturais privilegiados. A arte deixa de ser algo restrito a especialistas, críticos e seletos apreciadores, ficando ao alcance de todos - às vezes literalmente! -, inclusive das crianças. Para elas o contato com a arte desde cedo pode contribuir de forma significativa para seu desenvolvimento - e os livros ilustrados podem ser uma possibilidade interessante de oferecer isso no dia a dia.

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A incrível pintura de Felix ClousseauIlustração de  A incrível pintura de Felix Clousseau (Pequena Zahar): os limites e a conexão entre arte e mundo real são ampliados

 

Quem - ou o que - define o que é arte?

O debate sobre o que é ou não arte vem de longe. Na Europa do século 19, grandes salões de arte selecionavam artistas e definiam os critérios que atribuíam valor a uma obra. Eram eventos reservados a uma elite, claro. No século 20, começaram a nascer movimentos artísticos de vanguarda, que questionavam os padrões impostos pela academia e apresentarm novas possibilidades estéticas: surrealismo, cubismo, futurismo, expressionismo...Talvez um dos mais notórios personagens nessa quebra de padrões tenha sido o francês Marcel Duchamp. Foi ele quem liderou uma dessas vanguardas, que ficou conhecida como dadaísmo. A ideia desse movimento era questionar, provocar, se opor aos valores estéticos vigentes, lançando mão da ironia. Dentro desse contexto, ele criou algumas obras que ficaram conhecidas como ready mades, que nada mais eram do que objetos comuns, já existentes, mas expostos como obras de arte. Uma das primeiros foi, justamente, uma roda de bicicleta, que ele instalou em cima de um banco de madeira. Com a assinatura de Duchamp, até um mictório - sim, uma louça de banheiro - ganhou status de arte, com o nome de A fonte, em 1917. 

Roda de bicicleta e mictório viram arte, com assinatura de Michel Duchamps

Roda de bicicleta e mictório viram arte, com assinatura de Marcel Duchamp

Tudo isso para dizer que o conceito de arte é bem mais amplo do que se pensa e transita entre muitas e muitas camadas. Se o retrato de um pato e até um mictório podem ser arte, qualquer coisa pode ser arte? Depende. Para a professora Selma Machado Simão, coordenadora do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (IA-Unicamp/SP), “arte é uma manifestação humana que envolve a imaginação, a razão, o sentimento e a sensação, tanto para quem a frui, quanto para quem a produz." Ela cita vomo exemplos a Dança, a Música, as Artes Cênicas, as Artes Visuais, destacando que todas estas áreas podem "envolver interações físicas e/ou virtuais com o espectador".

Selma lembra que em um passado não tão distante, apenas os críticos de arte tinham o poder de dizer o que era arte e o que não era. Mas isso foi mudando aos poucos. “Muitos coletivos e grupos independentes passaram a produzir arte sem se preocupar com as análises da crítica. Embora ela seja importante, atualmente, o debate é mais aberto. Curadores, museólogos, profissionais do ensino, professores e estudantes participam da construção e disseminação de conhecimentos sobre arte, ajudando a promover outras instâncias pertencentes a ela, que antes não tinham tanto reconhecimento, como a Arte Popular, o grafite, o rap e o street dance, por exemplo”. Ela aponta que o surgimento da internet e a difusão de meios digitais aceleraram esse processo.

"Hoje, a arte expandiu seus horizontes e não se situa somente nos museus e nas galerias. Ela está em todos os rincões do país, nas cidades, espalhada nas ruas, nas comunidades e, assim, as discussões sobre arte foram ampliadas.” Selma Machado Simão

Então, o que é preciso para que uma criação ou um trabalho seja considerado arte? “Para ser arte, é preciso que haja um profundo envolvimento do artista com seu trabalho, através do qual ele concebe uma composição formal genuína, trazida do interior de sua própria subjetividade e intelecção, demonstrando um ‘fazer especial’, que forma uma expressão artística conceitual e sensível”, define. Isso significa que o resultado precisa conter alma e intenção ou percepção. Ou seja, até o retrato de um pato pode, sim, ser arte - mesmo que não grasne. Tudo depende do valor que se atribui ao que o artista quis expressar com aquela obra.

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Arte também é coisa de criança

De certa forma, a própria obra que conta a história de Clousseau é arte. Afinal, o conjunto de ilustrações de um livro, pode, sim, ser uma obra de arte. Porva disso é que este ano foi inaugurada em São Paulo (SP) a Galeria Página, um espaço dedicado a exibir e comercializar apenas ilustrações editoriais como arte.

Olhar para os livros infantis como uma possibilidade de oferecer às crianças também uma experiência artística, considerando a estética, a intencionalidade, o percurso de produção das obras, é importante para selecionar obras de qualidade e que proporcionem às crianças vivências ricas. A arte é muito importante para o desenvolvimento das crianças e faz parte de quem elas são de forma orgânica. “Crianças pequenas já têm múltiplas linguagens expressivas e a arte amplia este manancial de manifestações, além de facilitá-las”, explica a professora Selma.

“Ao falar, produzir e fruir arte, a criança obtém oportunidades de aguçar ainda mais seus sentidos e sensações, tornando-se mais atenta, concentrada e criativa. A possibilidade de exercitar sua criação em artes traz um grande contributo para a sua formação, pois ela se torna mais confiante e segura sobre suas próprias capacidades, já que passa a ser autora autônoma e protagonista de sua produção. Este fator desenvolve sua autoestima e colabora com sua socialização. (Selma Machado Simão) 

Por isso, é importante que as crianças sejam estimuladas a conhecer, explorar e produzir arte, de diversas formas. Em São Paulo, o Museu da Imagem e do Som exibiu a mostra Arte é bom, que  ilustra bem a ponte entre a arte e a infância. O intuito da exposição, que reuniu obras de nomes consagrados como Hélio Oiticica e Lygia Clark era: brincar. “Todas as obras foram pensadas pelos artistas para serem tocadas, sentidas, ouvidas, vestidas, puxadas, recriadas, remontadas, sob a influência dos imensos Lygia e Hélio. É para brincar, com a idade que se tiver, sem etarismo. É para os adultos reencontrarem algo que se perdeu da infância e para as crianças fazerem o que desejam com as coisas que encontram”, contou Daniela Thomas, uma das curadoras. Outra mostra que quebra barreiras entre o publico e a arte além de exaltar a ludicidade das obras é a da argentina Marta Minujin, que está em cartaz na Pinacoteca. Com cores marcantes, instalações como uma sala forrada de colchões e até um escorregador, as  crianças e adultos são convidados a brincar nas obras.

Na exposição Arte é bom, a ideia era interagir com as obras

Na exposição Arte é bom, a ideia era interagir com as obras

Mesmo que nem todas as exposições ofereçam a possibilidade de interagir com os obras nem convidem o espectador a brincar, visitar museus e galerias pode, sim, ser passeio de criança. Para elas,  Na verdade, pode ser muito legal, se a visita for planejada de um jeito que seja mais cativante. Para as crianças, quanto mais diversão, emoção e afeto envolvidos, mais fácil e atraente fica qualquer aprendizado. “Quando se fala das Artes Visuais, imagens com textos longos, nomes e datas para serem memorizados, ambientes austeros e ausência de estratégias de apresentação adequadas são completamente desinteressantes para elas”, afirma Selma.

Não adianta esperar que as crianças vivenciem uma visita longa demais, com  informações em excesso e pouca possibilidade de interação. Melhor selecionar obras e mostras que se conectem aos interesses dos pequenos, além de verificar o que as próprias instituições oferecem para crianças e famílias. “As equipes educativas dos museus têm criado atividades sintonizadas com as exposições e direcionadas a instigar o olhar e demais sentidos das crianças, incitando a curiosidade e o prazer de estarem ali compartilhando sua experiência”, orienta a especialista.

Um pato pode ser obra de arte?

A obra que só virou arte quando um pato de verdade saiu do quadro - ilustração de A incrível pintura de Felix Clousseau (Pequena Zahar), de Jon Agee

Como explicar o que é a arte para as crianças - e não deixá-la restrita aos museus

Crianças pequenas relacionam arte com brincadeira e o envolvimento com o corpo. “Podemos dizer a elas que arte é uma forma de brincar com cores, gestos, sons e movimentos”, sugere Selma.

Pais e professores têm um papel fundamental para estimular e aproximar as crianças do universo cultural. Vale tudo: peças de teatro, apresentações de dança, bibliotecas (com muitos livros ilustrados!), exposições, música… Tudo isso pode e deve ser incluído no dia a dia e enriquece a infância, além de ampliar o olhar para o nosso mundo indo na contramão da cultura de consumo. “A criança está imersa em um universo previamente idealizado para o consumo, tendo em vista que roupas, brinquedos, mochilas, artefatos etc. são fabricados com um propósito econômico específico, voltado ao mercado”, lembra a coordenadora do Instituto de Artes. Podutos para crianças têm imagens de super-heróis e personagens de filmes e produções da cultura de massa "visando condicionar o ‘gosto infantil’”,  como pontua Selma. Por isso, é fundamental ampliar o repertório dos pequenos, mostrando outras possibilidades.

“Nosso papel [como adultos] é trazer mais elementos para ampliar o repertório da criança, incentivando-a a produzir arte com outras referências, que podem ser trazidas da arte do passado, da arte contemporânea ou da arte que é produzida na sua própria comunidade. Seja por meio da Música, Artes Visuais, Dança ou Teatro, os pais, professores e mediadores culturais são iniciadores da criança neste universo. A mediação é fundamental para uma interação mais efetiva, daí a importância da formação e dedicação do adulto para aproximar e não afastar a criança da arte”. (Selma Machado Simão)

É claro que as crianças também adoram fazer arte e se expressar por meio dela, seja ao pintar, desenhar, colar, recortar, criar danças e músicas. Para Selma, porém, é preciso ter alguns cuidados para não engessar a experiência dos pequenos. Por exemplo, ao trazer  desenhos prontos para colorir ou preencher com bolinhas de papel; fazer ‘releituras’ copiadas de uma obra, nas quais não se dá espaço para a própria criação; promover dancinhas estereotipadas vindas de modismos; reproduzir peças teatrais sem aderência à vida da criança… "Tudo isso não ajuda em nada a essa aproximação com a arte”, explica. “É necessário que haja uma experimentação e exploração de instrumentos e materiais e que esta vivência seja espontânea. A proposta é lançada e, se a criança pede para o adulto ajudar, sutilmente, é possível auxiliá-la a tomar uma decisão sobre o que deseja manifestar no seu trabalho, respeitando seu próprio processo criativo e jamais tomando a frente e decidindo por ela. A criança tem muito a expressar, mas precisa de espaço para que isso aconteça", recomenda Selma. 

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